Ivone Gebara 26 de setembro de 2018

Responderei as perguntas na ordem que você enviou. Não vou reproduzi-las por serem bastante longas.*

  1. Há tempo que perdemos a ingenuidade de crer que a escolha do Papa não implica na existência de uma intenção prévia dos cardeais e de outros prelados assim como de pressões de diferentes movimentos internacionais em relação à linha política de Igreja que deve ser seguida. Analisa-se a conjuntura mundial eclesial assim como a problemática dos diferentes continentes. Nenhuma escolha é feita ao acaso apesar das surpresas que podemos ter. A eleição de um papa no final do conclave é de fato uma escolha dos eleitores e daqueles que eles representam. Nesse sentido é menos fruto da especulação dos meios de comunicação em torno de alguns nomes lançados como possíveis candidatos.

Na eleição também se leva em conta as qualidades pessoais de quem assumirá esta função de caráter internacional e local. O cardeal Bergoglio reunia sem dúvida as qualidades para assumir este importantíssimo cargo. A escolha igualmente respondia a uma problemática latino-americana e internacional de diminuição do número de católicos através do mundo. O cardeal argentino parecia ser a pessoa indicada para lançar um novo élan católico e para promover a tão esperada reforma da cúria romana.

  1. É evidente que as grandes empresas nacionais e internacionais de telecomunicação têm um grande interesse de transmitir a escolha, as viagens e os pronunciamentos do Papa. A figura do Papa, o papel internacional da Igreja Católica Romana e a importância do Vaticano do ponto de vista político e econômico rendem muitos benefícios às grandes empresas de comunicação. A renúncia e a escolha de um novo papa são um espetáculo mediático. Basta ver a quantidade de patrocinadores que se apresentam e têm garantido o sucesso de seus empreendimentos. A imprensa mundial que não parece ser confessional, de repente em relação à instituição do papado parece ser quase católica. Inclusive solicita a presença, sobretudo, de padres e/ou professores de teologia que a acompanhe no trabalho de transmissão ao vivo das palavras e dos gestos do papa. Era interesse da imprensa de mostrar uma figura humanamente diferente da ‘solenidade’ de Bento XVI como se quisessem já anunciar e vender ao público uma nova imagem do papa. De certa forma a imprensa tem feito a nova imagem do papa. Mas ele é mais e é menos do que se apresenta.

  2. Antes de responder a esta pergunta permito-me partilhar com os leitores desse jornal algumas breves idéias ligadas à vivência de uma religião institucionalizada. Creio que a maioria das pessoas tem uma expectativa idealizada, para além das possibilidades históricas de realização, em relação aos líderes religiosos. Sem querer os consideram como vivendo numa condição quase supra-humana e por isso mesmo desenvolvem em relação a eles expectativas muito grandes. Isto acontece no Cristianismo e em outras religiões. Parece que a religião sugere algo de perfeição e, por conseguinte, perfeição dos líderes dos quais se espera que resolvam problemas muitas vezes para além de suas forças. Nessa linha creio que nós católicos temos também a tentação de nos fixarmos demasiadamente em certas figuras que parecem indicar novidade, milagre, força moral e esquecermos de seus limites e daquilo que o povo faz delas. Nessa linha, é interessante nos perguntarmos como os jovens e menos jovens que participaram da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro interpretaram e seguem interpretando os discursos do Papa e sua presença no Brasil. E mais, como têm transformado nos lugares onde vivem as mensagens papais. Sem prévia intenção, um dia desses, liguei a TV numa estação católica e vi e ouvi um jovem comentando os discursos do Papa. Fiquei impressionada de ver como ele reduzia quase tudo o que o Papa falou sobre a questão da justiça e sobre a presença de Jesus a uma atitude espiritualista carismática e intimista. Jesus é nosso amigo, companheiro de caminhada, nos ama, nos ajuda… Nada de concreto aparecia na fala, especialmente no tocante aos grandes problemas do mundo de hoje. Esta interpretação poderia ser confrontada com outras particularmente aquelas que afirmam que com o Papa Francisco iniciamos uma espécie de primavera libertária na Igreja Católica. Isto me fez pensar na relatividade de nossas interpretações. Dito isso creio que o Papa Francisco não fez nenhuma alusão a Dom Helder Câmara e nem a Dom Oscar Romero ou a quaisquer outros bispos que tiveram um protagonismo importante na linha da teologia da libertação nos últimos 25 anos. Propositadamente, creio, ele não usou a expressão “teologia da libertação”. Intuo que não quisesse numa primeira viagem internacional desagradar a ninguém e nem criar polêmicas.

Além disso, em relação a Dom Helder Câmara, como sua pergunta alude, o fato dele dizer que é chamado comunista quando pergunta por que os pobres são pobres, penso que além da verdade dessa afirmação, ela é também expressão de um momento preciso da história do mundo quando os dois blocos – capitalista e socialista – estavam em aberto conflito. Lembro-me que nessa ocasião contrapúnhamos a figura de Dom Helder à figura de Teresa de Calcutá. Agora estamos num outro momento histórico, um momento globalizado onde a pergunta pela pobreza, pela falta de direitos, pelas guerras sem fim, pela destruição do planeta devem ser feitas em todos os rincões do globo terrestre, por todos os governos e por todas as religiões do mundo. Há uma responsabilidade coletiva que deve ser reafirmada no novo contexto mundial.

A Igreja sempre falou dos pobres e para os pobres. Não é novidade. A grande questão é mostrar como a mesma instituição tem o seu lado de compromisso com os pobres e o seu lado de apoio aos ricos, na medida em que deles recebe benefícios. A questão da mudança de estruturas mundiais é outra questão e, é bastante complexa, sobretudo nos dias de hoje. Esta mudança não virá apenas de uma política papal, mas da organização do povo e, no caso da Igreja Católica Romana, da organização dos fiéis que assumem sua fé de forma adulta e como compromisso de transformação das relações humanas na linha do direito e da justiça. Por muito tempo nos habituamos a consumir religião consolando-nos em ser a parte daqueles que não conhecem os mistérios da fé e apenas obedecem aos que conhecem a fé cristã. Hoje iniciamos outra página de nossa história. Esta quer ser escrita também por nós, ou seja, queremos ser não só acolhedores da tradição, mas também intérpretes daquilo que se costumou chamar verdades de nossa fé. Este viés ainda não é perceptível nos discursos de Francisco muito embora a questão dos pobres e deserdados do mundo esteja presente em sua agenda. É preciso esperar por seus novos passos.

  1. Muito embora a Igreja Católica Romana seja grande devota da Virgem Maria e de muitas santas mulheres seu compromisso com as mulheres de carne e osso deixou muito a desejar ao longo dos séculos de história. Desde os séculos XX e XXI, um vento emancipatório das mulheres vem atingindo também as Igrejas cristãs e entre elas também na Igreja Católica. Esse vento emancipatório de grandes proporções tem levado vários grupos de mulheres a querer formular a tradição cristã a partir de sua experiência histórica contextual e tentar sair dos discursos universais que a razão masculina propôs ao longo dos séculos. Essa razão masculina afirmou de muitas maneiras a superioridade dos homens em relação às mulheres e a tal ponto que até Deus passou a ser simbolizado historicamente a partir do masculino. A centralidade do masculino expressa nas diferentes áreas da teologia católica favoreceu a manutenção das mulheres como cidadãs de segunda categoria, muitas vezes silenciadas e dominadas, sobretudo, quando ousavam expressar-se de forma diferente do ‘statu quo’ religioso.

Em muitos lugares da América Latina a teologia feminista acompanhou a pauta de luta das feministas na sua diversidade. Entretanto também atuou desde os conteúdos bíblicos e teológicos vigentes tentando apresentar uma leitura mais inclusiva dos conteúdos teológicos. A literatura sobre os diferentes assuntos de teologia é vasta, embora os países da América do Norte e Europa ocidental sejam mais privilegiados na produção e na divulgação.

  1. Creio que é melhor falar aqui de teologia feminista e suas relações com o Vaticano. A grande questão da teologia feminista está no fato das muitas suspeitas em relação ao estabelecimento da doutrina católica ao longo dos séculos assim como suspeitas em relação à antropologia hierárquica que preside as diferentes posturas da oficialidade da Igreja Católica Romana. É nessa dupla perspectiva que embora hoje se afirme a igual dignidade das mulheres em relação aos homens tanto a teologia, quanto a dogmática e as instâncias de governo da Igreja têm cara histórica e representatividade eminentemente masculina. Mais ainda, a autoridade masculina além de exercer controle sobre as consciências tenta exercer controle sobre os corpos e muito especialmente os corpos femininos na expressão da vivência de sua sexualidade. Este é o ponto mais vulnerável dos conflitos entre teologia feminista e Vaticano. A atitude de tutela das autoridades da Igreja Católica Romana, em pleno século XXI sobre os corpos e particularmente sobre os femininos é um anacronismo e um abuso de poder que o feminismo vem denunciando. O combate às teólogas feministas, o silenciamento, a falta de espaço acadêmico nas universidades católicas são o castigo à nossa busca de direito e justiça no interior da instituição. Entretanto, há uma audiência das vozes das teólogas e biblistas feministas em espaços não necessariamente religiosos.

  1. Esta pergunta nos mostra a necessidade de termos mais clara a procedência de jovens católicos que participaram da Jornada Internacional da Juventude. Seria um importante trabalho de sociologia da religião e também de teologia pastoral visto que teríamos mais clareza sobre o público do Papa e a que tipo de tendência eles pertencem. Sem dúvida para a imprensa nacional e internacional este dado não parece ser tão importante visto que assumem posturas marcadas por generalidades. Mas, para as pessoas preocupadas com os rumos da Igreja Católica Romana este dado é bastante importante. Temos que nos perguntar sobre a diversidade de cristianismos que os diferentes grupos de jovens seguem e de certa forma representam. Estamos numa época em que a música tecnológica bastante ruidosa domina nas Igrejas. Multidões se comprimem para ouvir um padre cantor e louvar a Deus. Novos conjuntos musicais estilo gospel fazem um enorme sucesso. Milagres e curas se multiplicam. Há alguma beleza em tudo isso, mas onde situar aqui os apelos éticos do Evangelho para que mudemos nossas relações? Que problemas ocupam a juventude das Igrejas ou dos movimentos religiosos? Estas são apenas algumas perguntas das muitas que brotam em nossas mentes e corações. Por isso é preciso esperar mais algum tempo para ver a direção que tomam as igrejas locais na sua relação com o novo papado. E mais, é preciso que estejamos atentos/as aos grupos de jovens e aos indivíduos que continuam abraçando a tradição do Movimento de Jesus, mas se recusam a usar o mesmo perfume que caracteriza as multidões, que se recusam a entoar os mesmos cantos e a ovacionar o papa derramado lágrimas de emoção. Recusam-se a tornar as igrejas mais um lugar de ‘baladas’ e não hesitam em levantar suas vozes para fazer valer suas reivindicações por mais justiça e ternura no interior dos muros das igrejas. São poucos, penso, mas existem espalhados em muitos lugares.

Tudo que disse é apenas um ponto de vista entre outros tantos. Espero que ajude na conversa de vocês sobre o momento atual da Igreja Católica. Agosto 2013.

*Entrevista Jornal Brasil de Fato
Perguntas feitas por Simone Freire

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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