(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Recebi de uma amiga a notícia: o Museu Nacional está pegando fogo! Incrédula, liguei a televisão e ali estava o registro do horror, em movimento. As chamas lambiam lascivamente a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil e não conseguiam ser controladas pelos bombeiros. Seu destruidor apetite deixou um saldo aterrorizante horas depois: mais de 20 milhões de peças de valor incalculável poderiam ter sido perdidas para sempre.
Raras vezes vi tanta lágrima, choro, desolação. Crianças choravam, jovens, adultos e idosos. Amigos do exterior expressavam seu pesar e dor, enviavam sentimentos e condolências. As redes sociais anunciavam luto de tantos. E indignação de muitos mais. O fogo consumia nossa memória, nossa história, nossa cultura. Devorava a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil.
Agora, depois do fogo e da perda irreparável de muitas preciosidades, fazemos balanço. O incêndio era uma morte anunciada. As condições em que o Museu funcionava estavam muito aquém das aceitáveis e a ameaça sobre seu acervo era permanente. Não havia infraestrutura necessária para combate a incêndios, como portas corta-fogo, detectores de fumaça e jatos automáticos de água.
Era domingo, era noite, e a brigada de incêndio não estava trabalhando. O fogo avançara rapidamente. Havia, segundo informações da direção, um projeto para reforçar a segurança do museu, mas não saíra do papel. Os atrasos devidos ao descaso com a ciência e a cultura em nosso país foram fatais. As tragédias e os acidentes de grandes proporções não marcam hora. Acontecem e se não forem tomadas rigorosas providências corriqueiras para evitá-los, a perda é inevitável.
Perdeu-se ali mais que um museu, o mais importante do país e um dos mais importantes do mundo. Mais do que peças preciosas, sem equivalentes em qualquer lugar do planeta. O crânio do ser humano mais antigo que já se encontrou em nossas terras: Luzia, a mulher originária da qual todos descendemos. Perdeu-se um elo insubstituível da memória da história, da cultura e da ciência brasileiras.
Desapareceram nas chamas igualmente registros não digitalizados de línguas nativas de povos originários que não mais existem. Mergulhada para sempre na noite do não saber, a cultura desses povos não encontra mais oportunidade de ser reconhecida e aprendida nos tempos do hoje e do amanhã. As palavras, os cantos, os lamentos e os rituais desses povos foram reduzidos ao silêncio e calados para sempre. Sua memória mergulhou no esquecimento.
Pesquisas que levaram anos de vida e trabalho de cientistas e estudiosos podem ter sido irremediavelmente reduzidas a pó. Entre elas estão todos os projetos iniciados a partir da descoberta do crânio de Luzia, que lançava uma luz insuspeita sobre as possibilidades do povoamento do Brasil e da América. A América Ameríndia parecia ser, depois de Luzia, uma Proto Afro América. Tudo isso foi lido nos traços que o crânio de Luzia revelava e se tornava memória ativa e fecunda de nossas origens.
A memória é uma categoria inestimável para o ser humano. Segundo o grande filósofo Martin Heidegger, a memória é o recolhimento do pensar fiel. Ela protege e guarda consigo tudo aquilo que é importante, que faz sentido, que une e harmoniza os fatos com uma linha mestra que permite recordá-los e lê-los com a razão e o conhecimento. A memória é, pois, a condição de possibilidade da cultura, da civilização e de tudo que o ser humano conhece e constrói sobre a terra.
Pela memória se narra e se conta sempre de novo a história das experiências e dos feitos, do diálogo que faz nascer e confirma a identidade. Fazendo memória, narra-se e conta-se para as novas gerações, a fim de poder testemunhar e não deixar esquecer aquilo que fez e deve continuar fazendo a humanidade viver, sofrer, rir, pensar, falar e conhecer. No caso do Museu Nacional, tratava-se daquilo que fazia o povo brasileiro autocompreender-se e projetar-se para além de suas fronteiras.
Antes do fogo, nossas crianças e jovens podiam ali encontrar muito do que na história do Brasil era conteúdo digno e justo de ser refletido e recordado. Podiam conhecer e re-conhecer passos e caminhos que o povo brasileiro dera no encalço de sua identidade. Podiam ver descortinar-se diante de si os horizontes do futuro possível da ciência e da cultura que o acervo do Museu tornava possível em novos projetos ali gerados e gestados.
Depois do fogo restam as cinzas e a dor, que convivem com a esperança do que se pode resgatar, juntamente com a indignação que obriga a desejar e trabalhar para que a verdade venha à tona, negligências sejam apuradas e obscuridades esclarecidas. Que a cultura brasileira sobreviva ao fogo. E que a memória não nos deixe esquecer de nossa responsabilidade diante do mais precioso que temos: aquilo que somos e que nos tornamos ao longo da história que construímos.
Obs: Autora de de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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