Djanira Silva 1 de setembro de 2018

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Foi assim, num dia assim, tão triste assim, que, sem tempestades e trovoadas, a lâmina do silêncio dividiu minha alma. A que sobreviveu ficou comigo.

Da que se foi eu sabia de tudo, das manhãs e das noites, das tristezas e dos prazeres, de todas as horas vividas sem o temor das incertezas. Dela, ainda sinto as palpitações do mundo nos odores, nos sons, nas mudanças do tempo. O calor do corpo nos lençóis, o perfume dos cabelos na maciez dos travesseiros, arrepios de prazer, beijos maduros colhidos nas madrugadas.

Durmo em alerta. Acordo na espera. Assim, todos os dias, até que o mundo se apague. Na escuridão as sombras ressuscitam lembranças. Só elas sabem dos mistérios das idas e das voltas.

A dor trucida a alma, transforma os sonhos erm fantasmas bipartidos.

Aves de rapina, agourentas, asas e bicos multiplicados, prontos para atacar. Preciso habitar novamente o mundo, me identificar com o feio e o belo, o divino e o sórdido, encarar sem medo este lado mortal ferrado na carne, pela argamassa do sangue.

Nada me impede de esperar.

Consumida entre noite e dia, vida e morte, riso e dor, corpo e alma, perco-me no enredo dos contrários. Não vejo as sinalizações. Pouco importa, ainda não sei para onde vou.

O olhar escureceu antes do tempo. Porta fechada, luz apagada, cama desfeita, saudade de plantão a noite inteira.

O invisível apagou a luz, acendeu estrelas, revelou estradas, bloqueou caminhos.

Nada me impede de sonhar.

Na magia dos movimentos desperto em tuas mãos. O arco-íris atravessa meu corpo. Então, nos teus braços, morro e renasço, luz que se apaga, luz que se acende.

Revisito o mundo. Planto certezas ao longo dos caminhos, polinizo as flores dos campos, banho-me nos regatos e nas cachoeiras, deito-me em covas rasas e fundas, escrevo meu nome nas lápides e nos mausoléus, vejo tua imagem refletida nos vitrais dos conventos, e, ao cair da tarde, descanso dos benefícios da espera no som preguiçoso dos Cantos Gregorianos.

Escrevo a vida sem ponto final no caminho das idéias. Descubro o mistério e a leveza do suspiro, anulo a certeza do último, daquele que apagou teus olhos.

Por um momento, amei, amei os grãos de areia de todos os desertos, o pulsar de todos os corações, as ruínas de templos e palácios, o som de todas as chuvas, a leveza das sombras do sol, a dor de lágrimas em segredo.

A solidão enfunou as velas do barco. As nuvens se desencontraram.

Num dia, a presença. No outro o para sempre. O nada.

Como viver agora se só tenho meus olhos?

Todos os dias acendo tua presença como quem acende uma vela ao pé do altar.

Nunca pude esquecer aquele olhar, o derradeiro, que escreveu no meu rosto esta saudade.

Sem ti já não me servem os caminhos da volta.

O esquecimento ameaça-me os sonhos neste silêncio de ausência.

Para descansar de mim colho os frutos plantados nos quintais da minha infância e espero, espero até que o relógio marque a hora certa.

Escrevo com a máscara sobre a mesa para poder chorar.

Sentimentos redondos sem começo e sem fim desenterram fantasmas de velhas, mentiras, pecados perdoados.

Espero-te do lado de lá da minha adolescência.

Obs: Texto retirado do livro da autora –Morte Cega

A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Doido é quem tem Juízo (2012); Saudade presa (2014); O Sorriso da Borboleta (2018)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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