Ivone Gebara 15 de agosto de 2018

Não vou escrever sobre a visita do Papa e sobre seus pronunciamentos. Muita tinta já correu a esse respeito. Quero falar um pouco do povo papal, isto é, das pessoas que não mediram esforços para estar perto do Papa.

Creio que as milhares de pessoas presentes nas missas e aparições públicas do Papa tinham milhares de sentimentos em relação a ele. Cada um e cada uma transformavam o Papa à imagem de suas necessidades e sonhos. Em conjunto reproduziam os fenômenos coletivos em torno de alguém reconhecido como especial por seus diferentes dons e qualidades. O fenômeno é semelhante quando se trata de um cantor célebre ou de um conjunto musical ou de um ator que atrai numerosas fãs, embora a repercussão e os efeitos sejam diferentes.

No caso do Papa, a mídia brasileira teve um papel fundamental para criar a necessidade em muitas pessoas e grupos de ver o Papa. Conseguiram vender bem o produto teuto-romano e torná-lo brasileiro. Todas as pessoas entrevistadas sobre as razões pelas quais queriam ver o Papa pareciam tocar emoções íntimas. Não havia análise, nem reflexão crítica, nem grande novidade. Na verdade não conheciam o modelo de Igreja proposto pelo Papa. Não conheciam qual o Cristianismo Católico Romano que ele representava e quais as políticas internacionais ele reforçava. A maioria falava da visita do Papa como se ele fosse fazer acontecer o que cada um imaginava que devia acontecer para a Igreja Católica, para o Brasil e para o mundo.

A mídia legitimada pelos poderes capitalistas e pela maioria dos representantes oficiais da Igreja Católica fez de Bento XVI um fenômeno religioso de massa e uma fonte de lucro certo para pequenos e grandes empreendedores.

Qual é o saldo real na vida do povo? O que entenderam de fato de sua mensagem centrada em um catolicismo em muitos aspectos anterior ao Concílio Vaticano II? O que ficou para o povo das reformas do Mosteiro de São Bento, do Seminário e das ruas de Aparecida, das melhorias no Santuário, da porcelana de Limoges usada pelo Papa? Que políticas a canonização de Frei Galvão fortaleceu? Que visão do Cristianismo Católico ficou para o povo latino-americano? E por que hoje há mais de três dezenas de pessoas brasileiras à espera de canonização?

Ouso dizer, com tremor e temor, que de tudo isso ficou a lembrança da camiseta comemorativa, da bandeirinha, da foto do Papa agora pendurada na sala, das aventuras da viagem, do sofrimento do qual se diz que valeu a pena. Ficou a dívida a pagar por conta do empréstimo feito, ficou o roubo de que se foi vítima na viagem, ficou o desemprego para alguns, ficou o cansaço para os mais velhos e em breve o esquecimento para muitos. A mídia fez e desfez o espetáculo. Os jornais quase já não falam mais do Papa e nem de seu amor pelo Brasil ou pela América Latina e Caribe.

Mas, de todas essas imagens me impressionou especialmente ver a quantidade de prelados purpurados em torno do papa e a quantidade de sacerdotes, seminaristas, religiosos todos com vestes oficiais aprovadas pelo poder central católico e à venda nas lojas de grife religiosa. Lá se viam os cônsules, os pró-cônsules, os soldados de diferentes categorias que agitados bailavam e incensavam o altar, o Papa, o povo ao som de vozes singelas. Outros, os príncipes com vestes amplas e tiaras reluzentes, sentados diante do Pontífice Romano, extasiados, contemplavam a figura imperial cujas vestes bordadas com ouro e prata, faziam dele o protagonista principal do espetáculo. Um espetáculo mediático grandioso, com câmaras televisivas, retransmissores potentes, papa-móvel e milhares de seguranças pelos locais onde passava Sua Santidade. Quase sem querer me chegam às analogias do “pão e do circo” para o povo, além do espetáculo do pretenso poderio romano, de direito divino, sobre todos os povos. E no meio dessa memória espetacular, lembrei-me carinhosamente de Hannah Arent (1), dizendo que no âmago da política romana está a idéia de que todos os territórios conquistados devem repetir a mesma fundação romana. A fundação amplia-se para os limites das conquistas romanas “como se o mundo todo não fosse mais do que um quintal romano”. Todos falando a mesma linguagem, amando as mesmas coisas, obedecendo aos mesmos ritos e fiéis à mesma organização e ao mesmo Imperador. E, é preciso não esquecer que esta é uma sociedade prioritariamente masculina. Só há príncipes e cônsules célibes e celibatários. Não há princesas, nem consulesas. Mulheres lembradas ou permitidas, só aquelas que entram na lógica da dependência e submissão ao poder romano.

Dorothy Stang, as profetisas camponesas contra a multinacional Aracruz, as feministas na luta pela dignidade das mulheres não tiveram lugar. E, ainda bem, pois não podiam aceitar a confirmação do espetáculo do qual não se sentiam parte em momento algum.

Fico me perguntando por que tantos bispos, padres e seminaristas e outros e outras se parecem a órfãos em busca de pai? Por que este delírio ‘paipal’? A que necessidade corresponde este comportamento? Por que esta emoção de tocar no pretenso sucessor de Pedro? Haveria mesmo um sucessor de Pedro? Não se poderia falar de sucessores? Sim, por que a história ensina que o papado foi uma invenção do Império Romano em expansão. Não haveria lugar para, ao se criticar os impérios do mundo, os bispos criticarem e mudarem também a forma imperial da Igreja Católica Romana? Não poderiam assumir uma postura menos reducionista da História passada, limitada a uma única interpretação, como se fosse a única verdade? O convite ao pensamento está sempre de pé.

Mas, de tudo isso é o povo que mais me preocupa. São os jovens alienados pelo espetáculo religioso e acreditando poder mudar o mundo através dele. O que me dói é o crescimento da alienação e a dificuldade de amar a vida como ela é, amor que é condição para transformá-la a partir do poder e do bem que estão em nós. (07.2007)

Nota:
(1) Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 162. 

Publicada na Adital – Agência de informação Frei Tito para Amérrica Latina, em 18/05/07.

Revista tempo e presença digital julho de 2007

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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