(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Para quem anda descrente da humanidade, o recente episódio do resgate de doze adolescentes tailandeses de uma caverna inundada foi uma bela surpresa. Uma onda de solidariedade se fez presente de um ponto a outro do planeta.
Uma corrente de desejos e sentimentos positivos apontava de todas as partes na direção da caverna onde os meninos e seu treinador estavam confinados. O heroísmo de tantos, que vieram de outros países para ajudar no salvamento, foi admirável. Em época tão conturbada como a que vivemos, trata-se de um autêntico reencontro da humanidade consigo mesma, como disse a acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira em recente artigo.
Os doze meninos e seu treinador permaneceram na caverna onde as fortes inundações os surpreenderam isolados por longos dias com comida escassa e em condições muito precárias. Quando foram encontrados, o mundo inteiro ficou impressionado por estarem em boas condições físicas naquela situação limite que viviam. Mas, para além disso, chamaram mais ainda a atenção de todos pela calma e equilíbrio que demonstraram durante todo o processo de encontro, resgate e salvamento.
De um grupo de adolescentes que formavam um time de futebol seria normal esperar medo, pânico e agitação ao se perceberem confinados em uma caverna escura por vários dias, sem saber como fazer para sair dali e salvar-se. A insegurança, aliada à escassez de recursos alimentícios e à exiguidade do espaço seco em meio à caverna alagada, tudo contribuía para que os meninos estivessem abalados e vulneráveis.
No entanto, o que se viu foi um grupo de crianças calmas, vivendo a dificuldade pela qual passavam com um sorriso nos lábios e muita serenidade. Nenhum chorava ou tinha qualquer reação de angústia e aflição. E assim permaneceram ao longo de toda a operação de resgate com muita expectativas e adiamentos sem fim.
Qual o segredo dessa paz, desse equilíbrio? Que espírito adejava por aquela caverna a ponto de conseguir tranquilizar desta maneira doze crianças em perigo? Cremos que a resposta se encontra em algo que acompanha o ser humano desde suas origens e que ao longo da história tomou formas e configurações diversas e fascinantes: a espiritualidade. Ou seja, a capacidade do ser humano de elevar-se além do sensorial e do racional, e experimentar a transcendência.
No caso do time dos “Javalis Selvagens” que comoveu o mundo, parece que a fonte imediata daquele enfrentamento admirável de uma situação tão adversa encontra sua raiz na pessoa do treinador Ekapol Chanthawong. Foi ele quem os levou à excursão que acabaria isolando-os dentro da caverna. Mas foi igualmente ele que os liderou no processo de resistência que lhes permitiu conservar a vida e as energias, de modo que pudessem ser salvos e reconduzidos a suas famílias.
O treinador, antes de ocupar-se de times de futebol, foi monge budista e viveu desde os doze anos em um mosteiro. Dali saiu para cuidar de sua avó doente. Ali também aprendeu as técnicas e o método da meditação budista durante uma década. E quando saiu, levou consigo a espiritualidade que havia vivido no mosteiro. O mosteiro ficou gravado em seu interior e o faz até hoje manter contato com a comunidade que ali reside. Segundo o abade do mosteiro, Chanthawong continua meditando regularmente.
Parece que, ao constatar a situação de isolamento em que se encontrava junto com os meninos, passou a ensinar-lhes a meditar. O objetivo era mantê-los calmos e preservar suas energias enquanto ali estivessem. Assim se passaram duas semanas. Cada um fazia uma hora de meditação ao dia, e isso os ajudou a resistir durante todo o tempo em que estiveram na caverna até serem encontrados e resgatados.
Além de ajudar os meninos dando-lhes o que tem de melhor – sua espiritualidade – o treinador deu-lhes vida concreta retirada de sua própria vida. Jejuou e não se alimentou durante os dias de reclusão, a fim de que sobrasse mais dos poucos alimentos de que dispunha o grupo para os meninos. E foi o último a ser libertado e ver novamente a luz do sol. Certamente seus longos anos de ascese no mosteiro foram fundamentais nessa atitude e nessa prática.
Neste momento, quando ainda vivemos, juntamente com a euforia da Copa do Mundo, o alívio e a alegria de ver a todos os personagens da caverna finalmente sãos e salvos, somos levados a refletir sobre a importância da espiritualidade para nossas vidas.
A rica, admirável e milenar tradição budista pretende conduzir as pessoas em direção à iluminação e à paz de espírito. Poderia ter sido outra tradição. O importante neste caso é perceber a grandeza de nossa condição humana. Tão precária e frágil a ponto de contar com forças limitadas para sobreviver em situações difíceis. Mas tão incrivelmente bela e elevada de forma a enfrentar grandes dificuldades graças ao espírito que anima uma corporeidade finita e mortal.
O time dos Javalis Selvagens e seu treinador nos sinalizam algo da maior importância. É preciso cultivar o espírito, investir na vida espiritual, seja em que tradição religiosa for, ou mesmo fora de qualquer uma. Certamente faz a vida mais digna desse nome. E pode ajudar-nos muito quando nos virmos isolados em alguma caverna escura e inundada sem vislumbrar saídas evidentes.
Obs: Maria Clara Bingemer é autora de de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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