Vladimir Souza Carvalho 15 de agosto de 2018

O letreiro, lá, em tecido, ostensivamente pendurado de um poste ao outro, assinalava o nome: Bar Relento. Nunca me deu na curiosidade de indagar o motivo do nome. Depois, muito depois, quando o Bar Relento passou a ser mero pedregulho na minha montanha de lembranças é que percebi a força do substantivo relento: ao ar livre. Era assim, então, que deveria ser entendido: bar sem teto, ao ar livre. Contudo, corrijo os seus organizadores, que nunca fiz a menor idéia de quem eram, não era bar, alçando categoria maior, ou seja, era um restaurante, onde, ao que ouvia, se servia galinha frita, a guisada dos pernambucanos, na véspera do Natal.

Para os do meu tempo, vai lá a imagem viva: o Bar Relento se alojava no coreto da Praça da Santa Cruz, aproveitando bem o seu espaço [triangular ou quadrado?], com o privilégio de se assentar no alto, não ficando, assim, rente à superfície da praça. Em geral, passava o ano inteiro servindo de sanitário, onde o defecar era hábito que deixava fedorento vestígio. Para os festejos natalinos, lavava-se, armavam-se mesas com quatro cadeiras, todas cobertas por toalhas, e, eis lá a galinha frita que me atraia a atenção e inveja, ao tempo em que me causava indignação, por não conceber que pessoas se deslocassem a feirinha de Natal para … jantar. Pensamento inferior, de atraso, podia ser. Eu era estudante do ginásio, sem condições ainda de voar pelos planaltos, me contentando apenas em trafegar pela planície. Mas, era o que achava naqueles tempos em que a feirinha se alojava na Praça da Santa Cruz e eu era um ponto dentro dela, a percorrê-la do início ao final, dando vazão a minha permanente mania de ver para testemunhar.

O Bar Relento me mexia a curiosidade de menino, eu parava para melhor apreciá-lo, ponto inacessível para o pouquíssimo dinheiro que portava no bolso, como inacessível era o jogo de preá, que se situava no fundo do coreto, que não conseguia ver por muito tempo, porque a paciência não permitia que ficasse enquanto se vendia todos os bilhetes para colocar o preá no centro e esperar a sua boa vontade de se esconder em alguma das grutas de compensado. A solução era bater perna, feirinha a fora.

A feirinha da Praça da Santa Cruz foi a que mais ficou e me marcou em termos de Natal. De certeza plena, em 1957, já a alcancei, até que, lá para as tantas, acho que na década de setenta, mudaram seu palco para os lados do espaço próximo ao Estádio Etelvino Mendonça, onde antes fora o tanquinho da Santa Cruz. Quando o fizeram, a feirinha de cá já tinha criado longas raízes nos meus hábitos, de modo que a memória se recusou a guardar imagens do novo lugar, o coração preferindo ficar na Praça da Santa Cruz, fixo em alguma morena a andar na onda, ou, naquela outra, que, na casa de parentes, me distribuía olhares sem esquentar minha timidez.

Na feirinha da Praça da Santa Cruz, o grande desafio que o futuro me reservaria, na luta por um local ao sol, que eu traduzia como a luta por uma mesa no Bar Relento, a fim de saborear a galinha que nunca foi, à época, para o meu prato, porque, verdade se diga, nem prato eu tinha.

Como no poema de Manuel Bandeira, todos – a exceção de Amado José [Deus o tenha entre nós por muitos e muitos anos ainda] – estão mortos, vivendo apenas na boa lembrança que deixaram, no nome que souberam construir, e, como consequência, o fato de saírem de nossa frente, como a dizer que, ao desaparecerem de circulação, deixam o vazio a ser ocupado pela geração que vem depois, e, assim sucessivamente, no que mostra que a minha geração começa a entrar na fila, porque, a sua frente, são poucos os que permanecem na ativa, em nível de campo jurídico, no que não deixa de provocar um certo susto quando a notícia dos que se vão chega numa mensagem ou num telefonema. Não é que tenha medo da morte, que, afinal, é privilégio dos que estão vivos. Mas, se o Senhor puder, ou pudesse, me deixar uns cinquenta anos mais por aqui, bom, confesso, eu ficaria imensamente feliz. Se cinquenta for muito, me contento com quarenta e nove.  15 de outubro de 2016

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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