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Nas últimas semanas, a Copa do Mundo tem intensificado e até exaltado nossas emoções. Grande tem sido a explosão de alegria e, ao mesmo tempo, a decepção com as derrotas. De qualquer modo, rompemos com a rotina e redescobrimos ser capazes de fortes emoções. Com facilidade esquecemos, por um momento, que o futebol e os esportes em geral se degradam cada vez mais a um negócio escandalosamente lucrativo para pouquíssima gente, sem falar dos escândalos de corrupção que rondam as federações e confederações e ligas… Jogadores, heróis do povo, representantes da glória das nações: em grande parte, meninos pobres, nascidos em periferia, projetados pela bola às alturas da riqueza financeira e do prestígio social, o esporte feito caminho de ascensão individual, deixando no ar o rastro da ilusória sensação de que “quem quer pode” subir… e que o sistema não é tão mal assim, é só questão de “merecimento”.

Na Tailândia, em terras bem distantes de nós, doze crianças magrinhas e seu técnico e guia, quase à beira da morte, tiveram o poder de suscitar no seu próprio país e, em grande parte do mundo, a solidariedade pela vida. Que bom que se salvaram!

Duas situações que nos trazem de volta ao sentimento de que “vale a pena” sermos pessoas diferentes, vale a pena que o mundo tenha reservas de bondade, de delicadeza, de compaixão, de amor solidário e alegria. Vale a pena, mesmo que seja por uma única ou por poucas vidas.

Mas devemos confessar: esses dois acontecimentos escancaram a vergonhosa contradição contida no que acontece cada dia. Multidões de pobres jogados por aí em condições inumanas de vida; povos originários à beira do extermínio; populações negras inferiorizadas e vergonhosamente exploradas em África e pelo mundo afora, particularmente aqui, no Brasil, quase a nossa porta de casa; quantas famílias, com muito mais de doze crianças, a sofrerem fome cada dia; quantos jovens, quantas jovens, aqui mesmo, bem perto de nós, são assassinados, violentados e estupradas cada dia… motivos que seriam mais que suficientes para levantar clamor de solidariedade no mundo inteiro; e que dizer de países em guerras injustas e inúteis, como na Síria e na Palestina, por exemplo. Ah, quantos motivos para levantar a indignação da humanidade da vergonhosa indiferença em que jazemos, quase conformados(as), prostrados(as)!

Que triste espetáculo de infame egoísmo e de cinismo! Corremos contra o relógio para salvar doze crianças da morte, mas passamos indiferentes ao lado de multidões ameaçadas e igualmente à beira da morte! Que vergonhosa e trágica contradição! Até quem crê e as próprias Igrejas enquanto coletividades, parecem achar-se na mesma engrenagem da indiferença e do cinismo.

O panorama da história humana não parece muito animador. Não será sempre assim, se o passado nos mostra que a crueldade humana simplesmente prossegue em sua costumeira obra de destruição? Será sempre assim, e o preço do “progresso” será cada vez de novo a morte de multidões em função dos prazeres de muito poucos? E ainda nos sentimos com a obrigação de achar cinicamente que somos “racionais”, se nem chegamos ao nível dos animais que cuidam e defendem seu próprio bando? A Natureza parece até que seria bem mais racional deixada a si mesma, sem nós e nossas perversas interferências, vejamos a tragédia da Amazônia incendiada.

Parece ter razão aquela sábia mulher aborígene: A Terra não vai morrer. O que vai acontecer é que, como um grande animal, vai se agitar e deixar cair as pulgas que estão a incomodá-la, as pulgas somos nós…

Duas situações que nos jogam na cara a vergonha que se encarna no sistema do mundo, tão espontaneamente assimilado e endossado por nossa alienação: distraidamente entregamos nosso destino coletivo nas mãos de Outrem, classes e “indivíduos” (sim, gente que já deixou de ser pessoa há muito tempo) poderosos, gente completamente “outra”, de outra espécie que nós simples mortais, gente diferente de nós e contrárias a nós e a nossos interesses vitais… e nos confiamos a essa gente como se tivessem condições de providenciar para nós melhor condição de vida. Não será justamente como entregar à raposa a guarda do galinheiro? E o mais incrível é que ainda conseguimos dormir com tranquilidade e basta muito pouco para que nos motivemos a aplaudir, em praça pública, nossos próprios algozes…

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

Imagens enviadas pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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