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(para Lúcio Cardoso – 1912/1968)

Até hoje indago
por que perdemos a pureza do mundo,
aquele período em que céu e inferno
não passavam de noções infantis.

Quando é que perdemos também
a vibração das possibilidades,
em que ainda víamos a flor se colorir
da podridão dos monturos?

Passamos a procurar
o dia das coisas extraordinárias,
atávicos e livres
dentro dessa única jaula que possuímos:
a de sermos monstros para nós mesmos.

Por que objetificamos as pessoas
que não nos interessam,
tratando-as com a indiferença
dispensada aos objetos?

Porque do Amor intangivel e desmedido,
ficamos depois apenas com esse quinhão
que nos reduz a seres tristes e isolados,
num enorme e tangível dilaceramento.

Que a danação de cada um é um fogo,
é esse arder solitário.
Pois, mesmo que, às vezes ardamos dois,
ardamos comunitariamente, continuamos,
cada um, isolados na nossa chama única:
senhores de todo o mal e ultraje
que conseguimos suportar.

Porque o Amor é escada e abismo
e a mesma coragem ele nos exige,
seja na subida ou na descida.

Nós, que sequer sabemos expressar
o Amor dos homens,
queremos saber do Amor de Deus.

E como é doído ver aquela verdade
com a qual convivemos a vida inteira,
argamassada minuto a minuto no baú do pensamento,
geralmente úmida de lágrimas ocultas
e embebida em sangue sacrificado e inútil,
surgir tirânica e brutal em um lábio alheio.

E a felicidade, esse bichinho mais mimético da natureza,
pois nunca sabemos ao certo quando somos felizes.

É a idade a fita métrica da verdade?
Porque as verdades já as trazemos encalacradas
nesse vazio pueril da juventude,
elas só precisam ser compreendidas.
Elas, seres metamórficos que,
para virar realidade, só precisam de tempo.

Que o ser amado, querido e desejado
possua um forte santo protetor, porque só ferimos
– fundo, navalhando camada por camada –
não os que nos são indiferentes,
mas exatamente aqueles a quem mais amamos.

Porque condenamos tudo o que amamos.
Inicialmente, com a nossa agônica admiração
e depois, com os nossos insanos desejos.

Contaram, há muito, que o Deus do Amor
é um deus hermafrodita que,
reunindo numa só criação dois sexos diferentes,
entalhou a imagem da sabedoria e do conhecimento.
E, dessa dualidade, esculpiu o paradigma da perfeição.
Talvez, por isso, a incompreensão reinante
quando o Amor está em jogo.

Mas teimamos em confundir
o Amor com o “para sempre”,
desesperamos na obstinação
dos santos e dos loucos
e terminamos sendo o homem
do modo mais indigno:
o viver calado e só entre escombros
de tudo o que foi sonhado.

Resta-nos esse eterno engano
de achar que amamos pessoas diferentes
ao longo do tempo, quando, na verdade,
amamos a mesma imagem em criaturas outras.

Que o nosso cordão umbilical da existência
é costurado na sutileza do querer e do desejar.
E que o seu rompimento acontece com a perda e a traição,
essa cangalha do medo que carregamos durante toda a vida.

Essa desalmada trinca do gênero humano
composta de delírio, fraqueza e quimera
e essa vigília perpétua desse humano cárcere do qual
só escapamos, pela demência, pelo mistério e pela confusão.

Tentamos significar a vida
com a imagem do que nos parece belo
no coração de outro alguém.

Sem nunca saber que o Amor
é uma série de probabilidades
que emprestamos uns aos outros,
para que, nesse duplo viés, nos tornemos todos
significados e significantes entre si.

E para perceber a complementação
do desvelamento de Deus como graça
e não como pecado,
e para suportar a sua lei feita,
não da calma, mas da tempestade.

Enquanto não, eis-nos:
essas casas em ruínas
esperando um sopro de poesia
ou um rasgo sobrenatural
que nos possa redimir.

Obs: Imagem enviada pelo autor (ilustração: http://i1.wp.com/miltonribeiro.sul21.com.…/…/08/leitura1.jpg)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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