Da segunda a sexta, à noite, religiosamente, mamãe costurava. Máquina Singer, de cor verde escura . No início, o pedal da máquina era movido pela perna. Depois, montou um motor e uma lâmpada. E aí, desenvolvia suas costuras, em geral vestidos, blusas e saias. A freguesia era essencialmente feminina. E era pedalando e ouvindo a Rádio Nacional [do Rio de Janeiro], as novelas que antecediam o Repórter Esso, a novela que se seguia, a principal, e eu me lembro de Uma música ao longe, porque havia um personagem como meu nome, o que me deixava extremamente orgulhoso. Caçula de Zezé Aleijado lá aparecia, toda noite, para ouvir as novelas e conversar com mamãe, que, sem se desgrudar os olhos de suas costuras, estava atenta as novelas e as conversas.

E por falar em meu nome, havia uma música de Carequinha, iniciada pela chamada de cinco ou seis alunos, a responder presente, e, no meio deles, um dos últimos, tinha o nome de Vladimir, o que me obrigava a ouvi-la igualmente feliz. Numa terra em que só eu, à época, carregava o nome de Vladimir, outro Vladimir, na novela ou na música, quebrava a monotonia do nome.

Muitas das poucas camisas e calção que tive era mamãe que costurava. As camisas, depois de cortado o pano, duas partes da frente e uma, compacta, de fundo, eram todas juntadas à base de alfinete, para aquilo que considerava uma das maiores torturas que, na infância, tive de enfrentar: a prova. Lá vinha mamãe com a camisa em preparo para eu vestir. Os alfinetes incomodavam, ela calada, olhava, se afastava, examinava outra vez, verificava como a parte do fundo como se encontrava, se precisava ou não de ajustes, até me liberar. Que alívio! A impressão que tinha era de que o alfinete era primo do alfinete de noiva, planta que nunca faltou lá em casa e me proporcionava o sair papocando os frutos que nasciam, um por um, até que a idade me abriu outras portas e os pés de alfinete de noiva puderam se livrar de minha sádica conduta de predador reincidente e contumaz.

Um dia desse me lembrei da angústia da prova das camisas, eu querendo me livrar logo, achando que tudo estava correto e aprumado, e ela, bem calma, sem proferir nenhuma xinga, a observar se sua obra estava perfeita. Foi quando Cristiane queria que Pedro provasse algumas camisas para ver quais as que ainda podiam ser usadas ou não. Pedro, ressalte-se, com uma má vontade impressionante, a preguiça de parar de ver televisão ou de brincar, para se submeter a tarefa de vestir uma camisa, outra camisa, mais outra, etc. E aí, sem querer, me vi com a mesma má vontade ante as provas das camisas que mamãe costurava. Só que a consciência doeu, tantas décadas depois, ante a permanente paciência que mamãe portava, se misturando a saudade que não sabia de quê, mas sabia de quem sentia. (04 de fevereiro de 2017)

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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