Todos lamentamos as crescentes ondas de violência em nossas sociedades. Contudo, nem sempre tomamos consciência de suas raízes profundas, que frequentemente ficam tão escondidas que acabam sendo confundidas com fatores considerados neutros. Aqui também um estudo da história é esclarecedor, como se verá em seguida.

A tecnologia é neutra?

Visto superficialmente, o desenvolvimento tecnológico parece neutro, mas numa análise histórica se revela gerador de violência. Basta contemplar a história do Brasil, de Cuba, do sul dos Estados Unidos e de Colômbia, para verificar como a tecnologia de transformar cana de açúcar em tabletes de rapadura (açúcar não refinado) está na origem do tráfico negreiro e das misérias da escravidão, que perduram até hoje. Que o diga Jessé Souza, autor do best-seller ‘A elite do atraso’ (Leya, São Paulo, setembro 2017).

O império do algodão.

Neste texto me concentro numa história concreta: a história da produção tecnológica de tecidos a partir de algodão. Três anos atrás, o escritor americano Sven Beckert publicou um livro impressionante, que demonstra como a tecnologia do algodão mudou, nos últimos séculos, a face da terra. O título do livro é Empire of Cotton (Vintage Books, New York, 2015) e mostra como o ‘império inglês’, na realidade, é o ‘império do algodão’. Pelo que me consta, o livro não foi traduzido nem ao castelhano, nem ao português. Nele se pode ler, a partir do exemplo da tecnologia do algodão, como se deu o surgimento e o crescimento do capitalismo industrial, a lógica da agricultura industrial e das multinacionais de alimentos etc.

Ao longo de milhares de anos, os povos cultivam seu algodão em equilíbrio com as lavouras de alimentos. Há um equilíbrio. Como se entende então que, a partir do final do século XVIII, depois de muitos milhares de anos de crescimento econômico lento em toda a humanidade, algumas partes dessa humanidade repentinamente se tornam muito ricas, enquanto outras mergulham na pobreza? Eis o que a história do algodão industrial mostra, pois ela marca o início da Revolução Industrial. Embora, na atualidade, a indústria de algodão tenha sido ultrapassada por outras indústrias, o produto continua a ser importante para o emprego e o comércio mundiais. A produção mundial, em 2013, foi de 123 milhões de fardos, cada um com cerca de 180 quilos, suficientes para 20 camisetas por pessoa.

Estima-se que, já em 1621, a Companhia das Índias Orientais – criada pelos ingleses em 1600 – importou cerca de 50 mil peças de produtos de algodão para a Grã-Bretanha. No entanto, esse comércio era marginal em comparação com o que os comerciantes do Oriente Médio e da Índia negociavam. Esses últimos detinham, durante séculos, o comércio internacional nas mãos, ou seja, ‘vestiam a humanidade’. Mas, a partir do momento em que os ingleses começaram a ‘dominar as águas’ (‘rule the waves’), ou seja, possuíam as frotas marítimas mais poderosas do mundo, as coisas mudaram. A tese do livro acima citado consiste em mostrar que, concomitantemente com a presença sempre mais forte do Império Britânico em todo o planeta, se deu o primeiro processamento de algodão na Inglaterra, exatamente em 1784.

A tecnologia do algodão na fábrica de Samuel Greg.

Em 1784, a cidade inglesa de Liverpool se tornou um rico porto de tráfico de escravos e é com base nessa riqueza negreira que a emergente indústria de algodão pôde florescer. Membro de uma família negreira bem situada, Samuel Greg reuniu em 1784, numa pequena fábrica às margens do Rio Bollin, algumas máquinas de fiação ultramodernas (conhecidas como water frame), movidas a água (ainda não a vapor). Órfãos e trabalhadores domésticos de aldeias da região começaram a trabalhar com um estoque de algodão proveniente do Caribe. Toda novidade de Greg consistia no fato que ele não utilizava mais a força do músculo humano, mas a queda d’água. Embora modesta, sua fábrica era algo novo. Ela estava destinada a mudar os destinos do mundo. Pela primeira vez na história humana, a produção de fios era feita por máquinas não impulsionadas por mãos humanas.

A fábrica de Greg provocou mudanças que ele mesmo nunca imaginou. A matéria-prima que ele precisava para as suas máquinas era fornecida por comerciantes de Liverpool, os quais a haviam comprado de navios provenientes da Jamaica e do Brasil. Greg passou a expulsar fiadores e tecelões indianos que até então dominavam a produção, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. Além disso, ele lutou para que grande parte de sua produção deixasse o Reino Unido e sustentasse o comércio de escravos na Costa Oeste da África, além de vestir seus próprios escravos em Santo Domingos, no Caribe. Em cima, ele começou a atender usuários fora da Inglaterra, na Europa Continental. Assim se formou uma vasta rede internacional. Partindo de Liverpool, os comerciantes britânicos dominavam os mares e formavam redes comerciais que se estendiam por todo o globo.

O triângulo Europa, África, América.

Desse modo se formou um triângulo de consequências, que eram positivas para uns, nefastas para outros. Eis os pontos do triângulo: a. a Inglaterra (Liverpool) que, naquela época, controlava os mares com sua frota comercial e militar; b. a África Ocidental, onde os ingleses trocavam seus tecidos por escravos; c. a América, que comprava escravos em troca de fardos de algodão cru cultivados por escravos da África. Era a repetição do triângulo feito em torno da produção de açúcar no Brasil, no Caribe e na América do Norte, mas desta vez com repercussões mundiais. Os fardos de algodão eram usados como carga de retorno a Liverpool ou Manchester, onde os tecidos eram fabricados, assim como, anteriormente, os fardos de tabaco enchiam os navios negreiros, depois de descarregar os fardos humanos. Desse modo, a carga dos navios estava sempre assegurada.

As máquinas maravilhosas de Greg, impulsionadas pela força da água (e, mais tarde, por vapor), impulsionavam outra inovação de grande importância: passaram a ser operadas por assalariados e se tornaram fonte de riqueza por causa da grande acumulação de capital. Isso criou um novo tipo de Estado, impulsionador do ‘progresso’, ou seja, criado como principal pilar do novo império do algodão. A partir de um embrião local, nas redondezas de Liverpool, a Inglaterra acabou por dominar uma economia global amplamente ramificada e por se apropriar de uma das principais indústrias da humanidade. Ao ‘vestir a humanidade’, a Inglaterra estendeu suas asas por todo o globo. Eis como nasceu o mundo como a conhecemos hoje.

A monocultura e o estado.

Sob pressão do império do algodão inglês, os agricultores na Ásia e na África foram forçados a entrar na monocultura do algodão, o que resultou, às vezes, em grande escassez de alimentos. Morreram milhões de pessoas em 1877 e, novamente, na década de 1890, tanto na Índia como no Nordeste do Brasil. A especialização em algodão – com seus preços voláteis – dominava o universo do dinheiro. Estamos diante de uma evolução violenta e ao mesmo tempo silenciosa, que causa a morte de milhões de pessoas, enquanto beneficia a poucos ricos. O sistema de processamento tecnológico de algodão, desde o início do século XIX, baseado na monocultura, com vastas plantações e exploradora do trabalho escravo, é fonte de violência. Durante um longo período, os britânicos não conseguiram forçar os agricultores indianos a praticar a monocultura do algodão, não conseguiram controlar os teimosos intermediários indianos, que não estavam dispostos a enviar algodão não processado para a Europa. Era preciso apelar para um Estado forte. Para o império de algodão, com seus barões de algodão, na Inglaterra e, mais tarde, na Europa Continental, era importante ter um forte poder de Estado, que pudesse forçar os agricultores e os trabalhadores a fornecimento e produção permanentes. Assim se compreende que não é coincidência que o século XIX fosse marcado pelo surgimento de poderosos Estados-nação (o termo ‘nação’, aqui, é um eufemismo, como bem explica Fábio Konder Comparato), bem como de um proletariado nas centenas de fábricas de algodão (com fiação e tecelagem mecânicas) na Europa e nas centenas de milhares de fazendas de cultivo do algodão que exploravam escravos, do outro lado do Atlântico.

Isso explica a Guerra Civil Norte-Americana, que teve efeitos globais. O ano 1861, início dessa guerra, foi uma data-chave na rede mundial do algodão. A guerra continuou até 1865. O motivo era a abolição da escravidão. As cidades do Norte da América, onde o algodão era processado, eram a favor da abolição; o Sul rural, onde os escravos proporcionavam riquezas nas imensas plantações, defendia a escravidão a ferro e fogo. O conflito entre o Sul conservador dos EUA e as cidades ao longo da Costa Leste norte-americana tem reflexos até hoje (é só pensar na vitória eleitoral de Donald Trump). Devido a essa guerra, houve de repente uma escassez de algodão no mercado mundial, resultando em aumento de preços. Centenas de fábricas na Europa foram fechadas; centenas de milhares de trabalhadores ficaram desempregados. Os barões de algodão estavam ansiosamente à procura de novas regiões produtoras de algodão. Ao se unir ao Império Britânico, a Índia expulsou os indianos ‘teimosos’ de seus teares e os empurrou em direção à zona rural. O Estado Indiano serviu para cultivar algodão – não para os seus próprios teares ou para as fábricas de algodão da Índia (que surgiram por todo canto nesse período) – mas para ‘o mundo’, ou seja, para a Europa. A história de Gandhi gira em torno dessa realidade. Ao mesmo tempo, a África foi dividida em colônias e também foi direcionada, tanto quanto possível, para a monocultura do algodão. Com a crise da Guerra Civil Norte-Americana, as colônias foram forçadas a produzir algodão para ser processado na Europa. Indianos e egípcios, brasileiros e mexicanos, todos compravam máquinas britânicas e desse modo, o império do algodão provocou uma desindustrialização nos países do Sul. Os fabricantes de tecidos ocidentais fizeram numerosas tentativas para, por meio de pressão exercida pelo domínio colonial (portanto, o governo), destruir o processamento de algodão por fiadores e tecelões locais. Em consequência, fiadores e tecelões tinham de optar por cultivar algodão como assalariados ou, então, desaparecer no proletariado urbano ou se refugiar no campo.

O algodão migra para o Sul

Mesmo assim, aos poucos o algodão migrou para o Sul. Na década de 1930 surgiu, na então colônia britânica do Egito, uma das maiores fábricas de tecido de algodão do mundo, com 25 mil trabalhadores têxteis. Isso depois de anos de dificuldades criadas pela importação de algodão britânico. Foi um marco na história, pois mostrou que a produção de tecidos de algodão estava aos poucos abandonando a Europa e criando um novo cenário mundial. Em muitos países, a descolonização foi fortemente apoiada pelos fabricantes de algodão e seus trabalhadores. Nacionalismo, emancipação e apoio ao processamento nacional de algodão andavam de mãos dadas. Enquanto a posição dos fabricantes de algodão no Norte enfraquecia gradualmente, os fabricantes do Sul (no Brasil, por exemplo) conseguiram criar um Estado (apoiador) de acordo com suas necessidades. Quebraram aos poucos a hegemonia do algodão do Norte.

No início do século XX, a indústria de algodão da Ásia era a que crescia mais rapidamente e desse modo a produção da matéria-prima voltou para onde ela tinha começado, milênios atrás. Hoje, nossas roupas são fabricadas na China, em Bangladesh etc. (muitas vezes em péssimas condições de trabalho). Se o império do algodão primeiramente se serviu de Estados fortes e apoiadores, ele, a partir da década de 1970, procurou se libertar deles. As multinacionais de algodão e de têxteis tomaram a dianteira e agora ignoram largamente os Estados (que elas primeiro utilizaram para a regulamentação e para os subsídios). Sem obstáculos, elas hoje se instalam onde é mais barato, sem mais nem menos. Pois, no mundo de hoje, são elas que mandam, sem contestação à altura.

O império Monsanto

Até aqui focalizei a história do algodão. Mas, em se tratar da relação entre tecnologia e violência, não se pode omitir histórias mais recentes, como a do ‘Império Monsanto’, por exemplo. Um Império novo, vinculado à tecnologia do algodão, pois 26% de todos os inseticidas usados no mundo são destinados ao cultivo de algodão. A Monsanto conseguiu impor à Índia seu algodão geneticamente manipulado (algodão Bt), provocando ondas de suicídio entre os agricultores. Ela é famosa por dispor de um lobby fortíssimo junto a governos do mundo inteiro, com uma legião de advogados. Assim conseguiu que se discriminasse, em muitos países, a produção de tecidos a partir de fibras de e cânhamo (hemp, hanf, chanvre), que são quatro vezes mais resistentes do que as fibras de algodão. Depois da Segunda Guerra Mundial, as grandes companhias usaram a problemática das drogas para lançar suspeitas sobre a fibra de cânhamo. Acontece que o cânhamo não precisa de agroquímicos (leia: não precisa de Monsanto) e a planta capta muito CO2, o que é muito interessante em tempos de mudanças climáticas. Felizmente, nas últimas décadas, está ocorrendo um retorno da produção e do processamento de cânhamo.

O império ABCD

Poderíamos falar aqui igualmente do ABCD. Nunca ouviu falar? Todo mundo conhece as ‘Unilevers’ e as ‘Nestlés’ da vida, mas quem conhece as invisíveis gigantes de alimentos ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus? Assim como o império do algodão, no passado, puxou todo o poder para a Europa, o comércio mundial de cereais e de substitutos de cereais (como a soja) puxa hoje o poder para grandes companhias multinacionais. A ADM (Archer Daniel Midland Company) foi fundada em 1902, a Bunge surgiu em 1818, a Cargill veio em 1865 e a Dreyfus foi criada em 1851. O valor conjunto das vendas das quatro empresas ABCD é maior do que a de muitos países. Em conjunto, somam cerca de 250 bilhões de euros por ano (dos quais, em 2015, a Cargill levou 106 bilhões). Se você analisar os dados do lucro dessas empresas nas últimas décadas, perceberá que os maiores lucros se originam menos da logística do transporte a granel não processado (trigo, soja, milho, café), que beneficia países como o Brasil, por exemplo, mas do primeiro processamento (e posterior transporte a granel) dessa matéria-prima (por exemplo, soja), a serviço da indústria de alimentos (que desemboca nos Supermercados) e de rações animais, sempre beneficiando os países centrais do sistema. Essas empresas de comércio jamais teriam conseguido ser tão grandes sem subsídios por parte de governos nacionais. Além disso, elas quase não pagam impostos. Porém, sem elas (as empresas ABCD), não haveria fazendas industriais na Europa e não haveria, do outro lado do oceano (com o Brasil na liderança), gigantescas lavouras de monocultura de soja e de milho. Não haveria os supermercados. Assim como o algodão provocou uma concentração nunca dantes vista de riqueza, as ABCD de hoje são o motor de uma agricultura industrial imposta mundialmente, que gera imensas riquezas para poucos. Elas representam, juntamente com as ‘Monsantos’ e as ‘Syngentas’, uma agricultura intensiva de capital, que marginaliza centenas de milhões de famílias da agricultura camponesa e que, além disso, esgota os ecossistemas, pois o transporte global de granel (por navio) é uma das causas do aquecimento global. Esse modelo agrícola faz parte do problema ecológico que enfrentamos, enquanto as práticas agrícolas sustentáveis nas mãos dos agricultores campesinos poderiam ser parte da solução.

Uma nota positiva.

Termino com uma nota positiva: ao lado desses absurdos, surgem, no mundo inteiro, movimentos de resistência, visando devolver às comunidades locais as chamadas ‘comodidades’ (commodities), coisas que são (ou deveriam ser) comuns a toda a humanidade, patrimônios da humanidade: ar, terra, sementes, água, transporte, alimentos. Atualmente surgem, em todos os continentes, soluções criativas que contrariam a fragmentação do planeta pelas ABCD e por outras mãos invisíveis.

(Este texto é baseado num estudo do Frade norbertino belgo-brasileiro Luc Vankrunkelsven, militante da Wervel (www.wervel.be), a quem, por este caminho, agradeço).

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.”

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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