No dia de São João, antes de o sol bater no chão da Praça da Santa Cruz, ouvia-se em toda Itabaiana os estrondos das ronqueiras de Samuel de Felismino Fogueteiro. Um após o outro, os 24 tiros despertavam a cidade ainda cedinho, marcando a abertura da tradicional Festa da Troca do Mastro. Em seguida, a alvorada festiva continuava com a exibição de um grupo de 3 a 5 homens empinando foguetes em direção às nuvens. Quando o som de todos os sinos da Matriz anunciava as 6 horas, uma banda de música regional começava a tocar suas zabumbas, tambores, triângulos, caixas e pífanos de taboca. Sem grandes talentos ou grandes vozes destacados, a banda animava uma plateia destituída de qualquer sofisticação. Não havia necessidade de inscrições para participar da festa e uma mescla de pessoas de condições sociais, culturais e financeiras tão diversas, marcava presença. A programação não sofria muitas inovações no ritual havia longos anos e o folguedo encontrou seu nicho nas mediações da casa do seu idealizador, o Sr. João da Marcela.

João da Marcela apresentava um aspecto geral saudável e o conjunto de suas características apontava que seus ascendentes eram povos dos Países Baixos, mesmo sendo procedente da Matapoã. Seu rosto mostrava predomínio das dimensões verticais sobre as transversais, com olhar vivo, desconfiado e matreiro. A pele da face tinha cor de manga rosa, com as maçãs do rosto rubras. Distribuía de forma exagerada a concepção de ser um homem de grande valor, destemido, sempre com boa disposição para tudo e que nunca se arrependia. Suas opiniões quanto à politica, religião, fatos sociais e comportamento ético de homens e mulheres eram as mais corretas e, batia no balcão com os punhos fechados de forma vigorosa, quando havia divergências. Em sua bodega ninguém bebia sozinho. Fazia companhia a todo freguês e tomava muitos goles sem participar da conta. No final brindava o cliente com uma dose de batida de maracujá e muitos elogios.

Algumas horas depois do alvorecer, sob o comando de João da Marcela, dois caminhões partiam da Praça da Santa Cruz com destino à Fazenda Grande, à procura do novo mastro. O da frente transportava a banda de pífanos e os homens que soltavam foguetes; o outro ia abarrotado de homens bebendo cachaça, gritando, cantando e balançando o corpo em sintonia com os movimentos do caminhão, que reproduzia as irregularidades do chão. O roteiro incluía o Beco Novo, uma rua estreita e longa, na qual se destacavam o Clube do Trabalhador e a casa de Vieira Lima: bonita, de varandas fartas, colunas fornidas, muitas plantas ornamentais e as mocinhas de maior formosura da região. No percurso, fazíamos uma parada obrigatória na Igreja do Cruzeiro, encravada no centro de um pequeno ‘quilombo’ de casas de taipa desgarrado da cidade, onde Divo Preto era o Zumbi, e viviam pessoas que trabalhavam com barro. Até chegar na Fazenda Grande, a estrada era um verdadeiro atoleiro cheio de ondulações. Com tantos freios bruscos e remelexos no corpo, era preciso refazer o equilíbrio para manter-se de pé na carroceria do caminhão.

A fazenda grande, misticamente bela e quase sempre vazia, mantinha pedaços de matas nativas que abrigavam pequenos animais silvestres. As árvores das margens de seus riachos rasos de águas claras e peixes miúdos estavam sempre repletas de pássaros de cantos bonitos e, o vento brando e fresco que batia em cada rosto trazia o cheiro suave da natureza e uma imensa paz. Cheguei a pensar que a carta de Pero Vaz de Caminha teria sido escrita por ali. Em contraste, um jumento cinza escuro de pelo duro e de potência invejável, inspirava incontáveis anedotas pornográficas. Escolhido o eucalipto mais alto e mais linheiro, procedia-se o corte e em menos de 30 minutos o novo mastro estava no caminhão.

O folguedo popular retornava, em silêncio e às escondidas, para um pequeno matagal no fundo do cemitério. O mastro retirado do caminhão entrava na praça, de forma triunfal, carregado nos ombros de homens fortes que no empurra – empurra daqui e dali disputavam a condução. Os pífanos empolgados produziam sons mais agudos e mais intensos, as batidas das zabumbas eram mais altas, os fogos mais estrondosos, e a multidão barulhenta e mais agitada. A cachaça parecia ser combustível capaz de produzir entusiasmo e força desmedida para aquelas pessoas vencerem tamanhas dificuldades. Os fotógrafos Ciro e Romeu registravam, para gerações futuras, de ângulos diferentes, os detalhes de um cenário bastante deslumbrante. O mastro novo enfiado no chão, o velho era transformado em lenha para queimar nas fogueiras de São João. O dia passava num piscar de olhos e no final da tarde a banda calava e a multidão alegre e cansada, escorregava devagar inundando ruas, becos e vielas, de volta para casa.

Para um menino que não comemorava aniversário, que não ganhava presente de Natal e que percebia, algumas vezes, sua mãe esconder lágrimas nos olhos pelo desjejum raquítico servido, a festa da troca do mastro apagava a dor da alma. Eu era talvez o mais alegre dos meninos da minha idade naquela multidão. Depois dos festejos retornei para casa sorrindo e já tomado de saudades. A felicidade e a fadiga juntas me levaram a um sono profundo. No outro dia acordei cedo e cheio de prazeres. As férias me esperavam. (Aracaju, 12 de março de 2016)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]