Em qualquer mapa se acha a cidade de Fortaleza na costa brasileira, e um pouco a baixo a pequena Baturité numa serra extensa. É nestas imediações que se encontra a cidade de Guaramiranga, onde passei minhas férias de 1976, no convento dos Capuxinhos.

Um dos padres, passeando comigo, mostrou-me um dia o lugar mais elevado: “Veja aqui o verde da serra, e alí em embaixo o cinzento do sertão”. O seu braço mostrava ao longe a direção de Canindé que eu só podia adivinhar. Nos dias seguintes, a cozinheira, Dona Maria, me dizia: “Que Franciscano é este que nunca esteve em Canindé?” Assim crescia em mim a fama do lugar e a minha curiosidade, até que resolvi enfrentar a viagem. “Mas tem que ir a pés”, dizia a peregrina, e ela me fez um desenho com marcos na estrada, que, conforme ela, seria infalível. E eu, coitado, acreditei.

No último dia das férias despachei minha bagagem para o convento de Fortaleza, e na madrugada do outro dia saí no escuro, seguindo o mapa, onde o primeiro ponto seria a casa da irmã da cozinheira, residente na última casa antes da ladeira que desce ao sertão. Esta irmã, não avisada, era para adivinhar que o peregrino recomendado talvez quisesse tomar café. Enquanto ela não parava de reclamar da irmã dela, saiu um beijú. Quando contei dos meus planos peregrinos, ela protestou: “Não lhe deixo descer sozinho. Minha filha vai com você até o baixão”! Esta filha por sua vez chamou uma colega muito interessada, e a descida foi animada. Mudança climática brusca. As meninas eram animadas, porque o namorado de uma delas morava lá embaixo. Eu já não era tão interessante para elas, e, quando chegamos no plano, elas me disseram: “Agora é só seguir em frente”.

Fiquei sozinho com meu pobre mapa e tentei adivinhar o caminho. São Francisco me dizia: “Não te preocupe”. Depois de 15 minutos comecei a ouvir som de chocalho, descendo a ladeira. Não demorou, e apareceu um casal, tocando um jumento. “Para onde vai assim?” perguntaram o estranho que estava perdido. “Vou para Canindé”, respondi. “Então venha com a gente que vamos até Grossos. Lá pode dormir, pois até Canindé não vai chegar hoje”. Louvado seja Deus. Era o senhor Osvaldo com sua esposa Helena, e a filhinha Zenira andava na cangalha do jumento. A carga estava cheia de encomendas. Aqui e acolá alguma dona de casa esperava por uma tesoura, um espelho, uma sandália. O jumento que estava no rumo de casa, me obrigava a um passo firme. Eu não podia perder este guia. Só a hora das entregas me dava uma pausa bem vinda. Ás 11 hs chegamos numa morada para um descanso. Eu achei pão e queijo na minha sacola, completei com um café que me deram: eis o meu almoço. Depois toquei uma música na gaita de boca e ganhei grande aplauso. Uma e meia seguimos viagem. Durante uns doze km não vimos uma casa. O sol era inclemente, e o mato rasteiro não tinha uma folha. Sómente o Juazeiro armazena água nas suas raízes e alegra o olhar do caminhante. Para não amolecer, eu comecei a tomar a dianteira, colocando metas: Até o próximo Juazeiro, onde eu descansava um pouco na sombra, até que os outros me alcançavam. Assim andamos até 5 e meia, quando de repente vimos palmeiras de Buriti. Alí era o sexto rio que atravessamos sem tirar os sapatos. Rios sem olho d´água, que só correm, quando chove. Alí encontrei o lugar Serrote que constava no mapa de Dona Maria.

“Agora é um pulo de gato até em casa”, disse Dona Helena, “o jumento sabe o caminho sózinho”. A menina que sentava entre as cargas, estava com um pedaço de madeira na mão e falou: “Este é o meu rádio”. Começou a cantar, e do rádio só saiam duas melodias, sempre as mesmas, durante duas horas, tão grande era o pulo de gato. Quando chegamos, eram sete horas da noite.

Duas crianças que tinham ficado, alegravam-se com a volta dos pais. Eu fui conduzido por um menino até uma aguada para tomar banho, sem saber, onde fica “bem aí”. Me senti pesado como um cavalo que trabalhou muito. A pobreza da casa estava à vista. Quando Osvaldo despachou o jumento, falou: “Desculpe que não tenho um caroço de milho para ti!” Foi o salário por um dia pesado. Na cozinha não ouvi barulho de panela, e ninguém falou de janta. Quando pedi uma rede, Osvaldo falou: “Não tem problema”! Ele ainda não tinha sono e começou a contar de sua vida de vaqueiro. A última coisa que ouvi foi a história de um tal de Barbatão.

Às 5 hs acordei com o pensamento: Hoje vou ver Canindé! O jumento já estava selado, pois o combinado era este: O Francisco de 12 anos ia me deixar até no ponto, onde se avistam as torres de Canindé. Quando me despedi de Osvaldo e Helena e Zenira, tinha impressão que eles eram meus parentes. Eram seis e meia. Até Canindé seriam 15 km, e as pernas eram pesadas. Francisco falava sem parar: O pai me manda sózinho até Canindé para fazer as compras”. Eu perguntei: “Quantas redes vocês têm?” – “Só duas”. Então a minha rede não tinha sido uma que sobrava, e alguém tinha dormido no chão. Mas isto “não era problema” para Osvaldo. Para caminhar, eu sentia mais dificuldade do que no dia anterior. Quando as torres do Santuário apareceram no horizonte, o menino falou: “Vou lhe deixar até na cidade”. E eu estava de acordo, pois tinha um plano. O menino contava: “Quando corro um pouco, fico cansado. O pai comprou um remédio, e eu fiquei corado, mas o vidro acabou.” Francisco tinha forte anemia.

Minha sombra andava um passo na minha frente e aos poucos diminuia. O sol já começava a castigar, e a queixa se insinuava, quando de repente um velho saiu de um mato, carregando uma peça de madeira muito grande. Era Deus que mandava seu mensageiro para eu criar vergonha: Você não tem nada para carregar e inventa problema! – Fiquei seguindo o ancião de perto, rezando o mistério de “Jesus carregando a pesada cruz.” Assim cheguei na cidade, onde procurei duas coisas: Uma farmácia e um bazar. Logo achei uma loja, que convidava com cores coloridas, e comprei uma rede. Depois vi a farmácia, já perto da igreja. Francisco, que não achava onde amarrar o jumento, entrava com a longa corda. Não sabendo o nome do remédio teve que procurar nas prateleiras até achar o vidro conhecido. Assim o guia tinha feito seu dever e tomou o caminho de casa. Quando já estava tarde, me lembrei: “Você queria comprar milho para o jumento”. Assim o servidor foi embora de novo sem a sua recompensa.

Depois fui até a Basílica de São Francisco. Quando cheguei, senti a sensação do salmista que entra no santuário. Parei para deixar sair um par de noivos que irradiava alegria e beleza. Eram exatamente dez horas. Deus não me levou a mal a minha pressa de sentar-me. Agora eu tinha chegado e nem sabia o que dizer primeiro. Graças pela feliz caminhada, sem dor de cabeça, guiado por anjos. Como é que eu, inocente, iria chegar com o mapa de Dona Maria? Graças pelas férias em Guaramiranga. E um pedido a Deus: Tua mão protetora esteja sobre Osvaldo e sua familia! Depois os pensamentos se misturavam: Cheguei! – Em casa! – Alegria apesar do cansaço! – Quando levantei o olhar para o Santo, me dei conta que na viagem eu não tive pensamentos tão santos. Mas São Francisco me falou: “Você andou com os humildes no caminho da pobreza e deixou-se tocar por eles. Descobriu estradas novas e deixou-se guiar”.

Não tinha mais nada para dizer: SÃO FRANCISCO DE CANINDÉ, ROGAI POR NÓS!

Saí saciado e fui até a porta do convento. Frei Lucas me recebeu na portaria.  (Teresina 1976)

Obs: O autor é Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrópolis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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