Rejane Menezes 15 de maio de 2018

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Fã de Chico Buarque desde os primórdios tempos quando a banda passava cantando coisas de amor e eu, com meus dez anos de idade, pedi a minha professora de violão para me ensinar a tocar aquela marchinha que dividiu com Disparada o primeiro lugar no Festival de Música popular Brasileira.

Desde então nunca perdi um show do meu compositor soberano em Recife. Para mim, sem dúvida alguma, é o maior compositor do Brasil, com uma genialidade que deveria deixar envergonhados os que de uns tempos para cá tentam assassinar a música brasileira.

Não tinha perdido nenhum show, fosse no Geraldão, no teatro Santa Isabel ou, nos últimos anos, no teatro Guararapes. Com ênfase do “não tinha perdido”, porque esse ano eu perdi. Não estava em Recife no início de maio, quando o show aconteceu por quatro dias.

E foi por não poder estar no show desse ano que eu lembrei de um momento muito especial, há 17 anos, quando presenciei um dos mais belos momentos da minha vida: o encontro dos dons.

A revista Isto É estava provomendo uma votação para eleger as personalidades do século. Na votação do juri popular Dom Helder ganhou na área de religião e Chico na área de cultura. Vendo aquele resultado tive a ideia de convidar Chico para visitar Dom Helder, quando estivesse em Recife para a turnê do show “As Cidades”.

Logo falei de minha ideia para Frei Betto e ele ficou encarregado de conversar com Chico, lá no Rio. A mim coube fazer a articulação com Zezita, secretária de Dom Helder. Articulações feitas, detalhes ajustados o encontro estava acertado.

Em 1967, Dom Helder expressou em uma de suas Circulares Pós-Conciliares suas impressões sobre o artista Francisco Buarque de Holanda, forma como costumava se referir a Chico:

Gostaria que Francisco [Chico] Buarque [de Holanda] continuasse produzindo, ao sopro da inspiração, tanto na linha de músicas engajadas como “Opinião”, “Morte e Vida Severina”, como na linhalírica da Banda… A criatura humana é complexa e ai de quem nos pretender mutilar, reduzindo o nosso todo a uma de nossas partes, a um de nossos aspectos…

Além do mais, a Banda me dá nostalgia do céu. Há quem não goste daquele final. Gosto muito. Lembra que terra é terra. Aqui o que é doce termina… Também o que é amargo…

Bênçãos saudosas, do Dom”

Em 19 de fevereiro de 1976 Dom Helder leu, em seu programa de rádio “Um Olhar Sobre a Cidade”, uma crônica que escreveu para Chico Buarque: “A Lição de Chico”, onde fala, de maneira carinhosa, sobre a música Valsinha. (http://institutodomhelder.blogspot.no/search?q=valsinha&btnG=Pesquisar)

Chico conta que a vez em que foi mais aplaudido em sua vida foi em um show no Geraldão, em Recife, quando anunciou a presença de Dom Helder na plateia. O Geraldão inteiro se levantou e aplaudiu.

Uma amizade assim precisava de um reecontro.

Chegando o grande dia fomos até o hotel onde Chico estava hospedado para ensinarmos o caminho até a casa do Dom. Sabem aqueles acasos da vida que nos propoprcionam momentos impagáveis? Quando chegamos ao hotel o motorista que levaria Chico para a visita não havia voltado. Estava ficando tarde e então levamos Chico e Vinícius França, seu empresário, para a visita ao Dom. De Piedade até a Boa Vista, fomos conversando com eles, eu, meu esposo e minha filha caçula, então com 7 anos e perguntou se Chico tinha cachorro.

Dom Helder recebeu Chico na sala de visitas de sua residência, atrás do altar da Igreja das Fronteiras.

À época fazendo parte do Grupo Igreja Nova, conversei com Chico para conceder uma entrevista exclusiva para o jornal que publicámos mensalmente. Só que não fiz a entrevista. Um amigo, também, à época, membro do Igreja Nova. Não queria passar pelo que passei anteriomente quando, aos dezesseis anos e já aspirando a ser jornalista, fui fazer uma entrevista com Chico para o jornal que nosso grupo de jovem editava, O Balaio, e não consegui, travei. Passei as perguntas para um amigo e ele fez a entrevista. Coisas de fã.

Na entrevista publicada no Jornal Igreja Nova de agosto de 1999, quando perguntado sobre o que Dom Helder representava, Chico respondeu: “Bom, para mim e para o Brasil inteiro, Dom Helder é um símbolo de luta pela justiça social. Se a gente se lembra dele no Rio de Janeiro, ainda no tempo da Favela do Pinto, nos anos sessenta, a atividade dele lá, deixou marcas até hoje. E mais adiante, pela democracia na época da ditadura, onde ele era uma das pessoas mais visadas, mais cerceadas, mais vigiadas e mais perseguidas. Eu conheço Dom Helder pessoalmente, desta época e tenho uma admiração profunda por ele. Eu e todos os brasileiros temos uma dívida muito grande para com ele.”

Foi, com toda certeza, um encontro memorável, para eles e dois e para as poucas pessoas que tiveram o privilégio de presenciar esse momento. Não podíamos imaginar que onze dias depois Dom Helder nos deixaria.

Sobre o encontro escrevi um artigo que coloco abaixo, e que foi publicado no Jornal Igreja Nova, ed. agosto 1999, no site de Chico (http://chicobuarque.com.br/texto/artigos/mestre.asp?pg=artigo_08_99.htm) e no blog do IDHeC – Instituto Dom Helder Camara (http://institutodomhelder.blogspot.no/2015/05/o-dom-e-eu-o-encontro-dos-dons.html)

E foi assim que aconteceu O ENCONTRO DOS DONS

Se um tem o Dom do Amor, da Paz e da Vida, o outro tem o Dom da poesia, da música, da alegria.

Se um defendeu o direito à vida e à liberdade, levando aos quatro cantos do mundo a denúncia em favor dos fracos e oprimidos, o outro denunciou, levando a sua música.

Cada um dos dois, a seu modo, vem lutando para que o nosso país possa se tornar um lugar melhor, onde todos possam se sentir incluídos e partes integrantes da mesma nação, com direitos e deveres iguais para todos.

E foi assim que, no dia 16 de julho, dia da padroeira do Recife, Nossa Senhora do Carmo, em um final de tarde claro, com restos de sol, a música, as letras, a poesia, os dons, enfim, se reencontraram, para celebrar a alegria de estar juntos.

O Dom mais velho, mais experiente, e, por isso mesmo mais cansado, aguardava em sua cadeira de balanço, a chegada do outro dom, mais jovem, menos experiente até, mas trazendo consigo também a sua bagagem de luta pela libertação de seu povo, de seu País.

Os velhos e alegres olhos castanhos do profeta/poeta/escritor/pastor, encontraram os olhos azuis saltitantes do poeta/músico/cantor e por que não dizer também pastor, quando conduz com sua música, ao deleite e também à reflexão.

Dom Helder Camara, simplesmente o DOM. Chico Buarque de Hollanda, simplesmente o Chico.

Um, genial em seu pastoreio, outro, genial em suas criações.

Articulado por mim, aqui no Recife e por Frei Betto, lá no Rio de Janeiro, o encontro dos dons foi um momento de ternura, ou de “fraternura” (como costuma dizer, carinhosamente, nosso irmão Leonardo Boff), visível nos rostos presentes.

De repente, o artista se levanta e cantarola trechos de “A Banda” para o profeta, que erguendo os braços alegremente, acompanha o ritmo da música, como se regesse uma orquestra: ” Estava à toa na vida o meu amor me chamou, pra ver a Banda passar, cantando coisas de amor. A minha gente sofrida, despediu-se da dor, pra ver a Banda passar, cantando coisas de amor”.

Com certeza, a luta do profeta e do compositor tem sido para que realmente a sua gente sofrida se despeça da dor. Não apenas para ver a Banda passar. Mas para viver num país onde a dignidade e a solidariedade sejam um princípio e não apenas uma referência. Mas um profeta não se cala. Suas palavras, suas denúncias atravessam o tempo.

A um cantor também, não se consegue calar. Como a denúncia do profeta, sua música ficará milênios, milênios no ar. Talvez os sábios em vão tentem decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, vestígios de estranhas civilizações.

Mas, com certeza, os amores serão sempre amáveis, e futuros lutadores, quiçá, erguerão suas bandeiras de luta em defesa da vida, embalados pelos poemas e pelas canções que um dia, o profeta e compositor, deixaram para eles.

Por isso, como diz o artista, “Não se afobe não, que nada é pra já”. E como diz o profeta: – “Não devemos temer a utopia. Gosto de repetir muitas vezes que, ao sonharmos sozinhos, limitamo-nos ao sonho. Quando sonhamos em grupo, alcançamos imediatamente a realidade. A utopia, compartilhada com milhares, é o esteio da História”.

Juntemos pois os nossos sonhos, pois só assim poderemos entender porque “O segredo de ser sempre jovem – mesmo quando os anos passam, deixando marcas no corpo – é ter uma causa a que dedicar a vida.” ( Dom Helder).

Obs: A autora é jornalista, blogueira e Assessora de Comunicação do IDHeC – Instituto Dom Helder Camara.
Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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