(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio)
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Imagino Dona Ivone Lara entrando no céu e abrindo passagem com sua presença majestosa e suave. Seguramente foi recebida com cuícas, tamborins, cavaquinhos e quantos mais sejam os instrumentos que a acompanharam por toda a vida. No samba viveu, dele bebeu inspiração e sentido. Ao samba deu o melhor de si, do samba sua vida projetou-se para além dela mesma. O samba foi sua casa, sua moradia, seu abrigo, sua verdade e sua raiz. Como não havia de acompanhá-la quando entra na vida plena e definitiva pela qual todo ser humano aspira?
O samba foi o sonho sonhado e realizado dessa que hoje o Brasil chora. Rainha, primeira dama de todos os enredos e escolas. Presença inspiradora para o seu querido Império Serrano e luz fulgurante para as mulheres, os negros e quantos buscam nesse Rio de Janeiro e nesse Brasil o caminho para a luz e a paz. Essa mulher negra bebeu música desde que abriu os olhos para o mundo. Aprendeu a tocar, a cantar e isso a ajudou a atravessar a precoce orfandade e as muitas lutas da vida que se apresentaram.
Nunca se separou do samba. Entrou no território machista e patriarcal da organização das escolas e foi a primeira mulher a compor um samba enredo escolhido e presente na avenida. Em território onde os homens predominam e as mulheres ficam em segundo plano, Dona Ivone sempre foi respeitada e reinou soberana. Foi madrinha da ala dos compositores de sua escola Império Serrano. “Nasci para sonhar e cantar”, dizia ela em um de seus sambas. E sonhou e cantou durante toda a sua vida.
O sonho da moça nascida em Botafogo foi sendo traduzido e comunicado em suas composições. Seu coração se derramava em samba e enchia ouvidos e corações, sendo depois cantado em várias bocas e dançado nos pés incansáveis de seu povo.
“Nasci para sonhar e cantar/ Na busca incessante do amor/Que desejo encontrar”, cantava a rainha do samba. Nessa busca do amor era incansável, na “madrugada/ que padece e não esquece”. Mas anunciava que “há sempre um amanhã para o seu pranto secar”.
Dona Ivone amou e foi amada. Teve filhos, netos e bisnetos. Viveu a gama de emoções e sentimentos que toda mulher experimenta quando ama e sonha com o amor feito de entrega total e plenitude. Mas também conheceu, por experimentar ou por observar nos que a rodeavam, a dor do desejo não satisfeito, do sentimento não correspondido, da saudade, do sonho não realizado. E assim compôs sambas que falam de traição, de volta, de perdão e distanciamento, de coração magoado e de vida retomada, ultrapassando mágoas e ressentimentos. O samba “Sonho meu”, gravado por ela e por outros grandes intérpretes é um de seus carros-chefes. Fala de um sonho que vai buscar quem mora longe.
Dona Ivone era negra. Uma negra orgulhosa de sua identidade e de sua negritude. Para cantar a beleza de sua condição compôs sambas inesquecíveis. O mais famoso talvez seja “Sorriso negro”, no qual canta sua identidade e a maravilha do sorriso negro, do abraço negro, de tudo que traz felicidade porque é a raiz da liberdade. Canta o “negro que já foi escravo”, que é a voz da verdade, é destino, é inspiração, é amor, e também saudade. Sua voz suave e solene ressoou durante décadas, levantantou alto a bandeira da negritude e desse povo a quem o Brasil deve capítulos gloriosos de sua história.
Dona Ivone Lara jamais parou de sonhar. E seus sonhos foram em boa parte realizados. Sua amada escola Império Serrano cresceu e foi campeã. Ela fez enredo para a escola e também foi enredo em 2012. Seu talento foi reconhecido e celebrado em todos os tons. À medida que o tempo passava, sua inspiração enchia o cancioneiro brasileiro de beleza e ritmo, e ela se afirmava como rainha do samba que tanto amou. Como mulher e negra, pertencendo portanto a duas categorias que em nosso país ainda devem lutar por seus direitos, conseguiu abrir caminho e ocupar um espaço que jamais lhe será tirado.
Hoje, quando choramos sua ausência e celebramos o rastro luminoso que deixou atrás de si não podemos deixar de lembrar um dos sonhos de Dona Ivone que ainda não se encontra plenamente realizado. No samba “Juízo Final”, ela expressa sua utopia, comum a todos os brasileiros e a todos os seres humanos. Trata-se do sonho de que o bem vença o mal, de que o amor triunfe e seja eterno novamente. Dona Ivone cantou em seu samba desejar “ter olhos para ver” do mal ser queimada a semente e a maldade desaparecer. Sonhou ver e viver o triunfo definitivo do bem sobre o mal e do amor sobre o desespero e a tristeza.
Dona Ivone, primeira dama, estrela maior de nosso samba, creio que agora você sabe que o amor vai triunfar. Lá, de onde você canta samba por toda a eternidade, certamente pode experimentar essa plenitude do amor e da paz. Só nos resta agradecer pelo tanto de beleza, inspiração, talento que você derramou sobre nós. A semente do mal ainda não foi totalmente destruída, mas o amor teimosamente levanta a cabeça e a esmaga a cada momento. Você muito contribuiu para manter viva e desperta a esperança de que um dia acontecerá o triunfo do amor sobre toda maldade.
Obs: Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.
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