Aprendi, ainda criança, a cumprir religiosamente minhas obrigações quotidianas. O costume nasceu na escola, que nos punia com a perda da aula quando chegávamos atrasados. Na verdade sempre chego muito cedo ao trabalho como forma de solidariedade, respeito e bem estar aos enfermos que comparecem no dia e horário marcados. Entretanto, vez por outra, alguém sem constar na pauta ou ser anunciado, embocava porta adentro para pedir socorro médico. Sentia-me enraivecido por ser obrigado a modificar uma agenda muito grande para tornar-me acessível ao invasor.
Certo dia, quando ainda arrumava os prontuários, fui surpreendido, e fiquei inicialmente confuso, com a atitude de um amigo próximo adentrando no consultório sem obedecer ao protocolo habitual. O penetra, descarrilhou sem interrupção a fala: “Preciso de sua ajuda antes de embarcar. Isso não é uma coisa boa. Há dias não sei o que é comer, o corpo anda quente, tenho náuseas, falta-me força nos braços e nas pernas, meu corpo está fatigado e tenho dificuldades para realizar as tarefas do dia a dia. Sinto-me esgotado pelo excesso de responsabilidade e muitas tensões acumuladas. Estou desmotivado para qualquer enxerimento ou sibiteza e a mulher que passei metade do ano querendo, está prestes a ficar pelada, deitar e rolar na minha cama. Vamos nos encontrar amanhã em São Paulo e estou angustiado com o impulso sexual muito reduzido. Sou devoto de qualquer fêmea bem torneada e ela é mulher de capa de revista. Tudo em seu corpo apresenta proporções equilibradas e para sentir-se mais sensual e sedutora, a todos os olhares ao seu redor, mantém forma física em dia. Caminha elegante e com movimentos graciosos empina a bunda saliente contida numa calça jeans bem apertada. As mulheres adoram provocar, receber elogios, presentes eróticos e novidades na cama. Mandei-lhe de presente lingerie, espartilhos, camisolas, calcinhas e um kit de submissão e dominação. Já bati o martelo e, mesmo como estou, vou assumir o desafio de viajar. Não vou para conhecer parques, monumentos, igrejas e museus, mas para desfrutar ao máximo desse encontro e viver a lua de mel dos meus sonhos”.
Informações valiosas podem ser obtidas enquanto o doente descreve seus males. De início observei ansiedade em sua face, aflição nos gestos e em seguida percebi seus olhos amarelados. As queixas e o visual apontavam para o diagnóstico provisório de hepatite e solicitei os exames necessários. Como ele insistia em manter o encontro esperado há mais de seis meses, prescrevi viagra e ele foi ao encontro de Dona Flor.
Depois de algumas semanas estava de volta e os exames confirmavam a suspeita de hepatite B. Quis adverti-lo sobre a doença, sua transmissão, evolução e tratamento, no entanto, ele não queria ouvir. Era maníaco por sexo e preferia falar de suas escapadas seguidas com várias mulheres. Eu não podia deixar a narração entrar por um ouvido e sair pelo outro. O adultério, mais do que a hepatite, naquele momento excitava minha curiosidade e o escutei atentamente: “é uma mulher fogosa de lábios insaciáveis e dona de uma obsessão incontrolável por saliência. Impecável na cama, suas fantasias libidinosas apimentavam meus desejos. Fazia striptease, usava máscaras, espartilhos, chicotes e fio dental. Fui seu aluno e evolui, de aprendiz a mestre, no domínio das posições de Kama Sutra. Tomava um gole de aguardente, para afastar a timidez, mastigava catuaba e maripuana, ingeria um comprimido azul e logo queria mais. Quando ela massageava o corpo com creme de feromônio de odor mágico, meu sangue fervilhava em combustão e com seu consentimento viajávamos, de forma delicada e sutil, pelo leste, oeste, arredores e regiões montanhosas, até chegarmos ao céu. A noite não devia amanhecer. Na infidelidade encontrei os melhores momentos de prazer da minha existência, vivendo experiências afetivas e sexuais completamente novas”. Disse-lhe apenas: seja qual for o motivo que o traga aqui, você encontrará um médico amigo. Retorne depois de dois meses para novos exames. É preciso observarmos a evolução da doença.
Dona Flor, a lindíssima amante, que na cama assumia conduta meretrícia, acometida por cansaço intenso perdeu a sensualidade e a desenvoltura de mulher libertina e suspendeu qualquer locação, por não ter disposição pra ao menos rebolar os quadris. Ele reconheceu a origem das manifestações, farejou a doença e, por vontade própria, os dois fizeram os mesmos exames. Os resultados da investigação laboratorial trouxe-me a certeza da transmissão de hepatite B entre parceiros heterossexuais: ele apresentou negativação do vírus e ela estava com hepatite B aguda. Ninguém, mesmo por estar cometendo adultério, deve permanecer escondido quando está doente. Senti ser imprescindível obter dados clínicos, interpretá-los com raciocínio, fazer um julgamento sobre evolução da enfermidade e darmos início à relação médico-paciente. Agendei para depois de quatro semanas sua primeira consulta e ela não compareceu. Associava uma atitude ousada a outra temerária.
Já havia passado quase dois anos quando o amigo reapareceu. Recebi uma paulada na alma: sem elegância, fisionomia melancólica, aspecto desgraciado e vestuário com visíveis indicadores externos de pobreza. “O motivo da minha visita é solicitar-lhe ajuda. Preciso fazer um cateterismo e ultrapassa de quatro meses a data marcada pelo SUS. Por acreditar em você estou aqui”. Colocou sobre meus ombros a responsabilidade de encurtar esse prazo. A proximidade da morte e a dificuldade de encontrar atendimento, afetam as pessoas em todas as dimensões: humana, física e psíquica. O tamanho da fila é um desrespeito aos direitos humanos e uma demonstração clara de que não se oferece a assistência estabelecida na constituição. Mexi os pauzinhos, de forma lícita, e o exame foi antecipado para o fim da semana que ia chegar. Mostrou-se superfeliz com a ajuda, esboçou um sorriso e passou a falar mais sobre questões pessoais.
“Sempre trabalhei arduamente, entretanto, mergulhei numa paixão profunda e perdi a lucidez e a visão dos negócios, embebido por afagos, gemidos e rebolados. Acumulei dívidas impagáveis para sortir sua boutique, financiar seu luxo e satisfazer meus prazeres. Descobri que outros homens habitavam sua cama, mas, fingia não perceber porque temia perder seus encantos. Somente quem passou por isso pode me entender. Ela bateu em retirada e isso machuca-me todos os dias. Sinto-me num cativeiro prolongado à beira do precipício, mas não guardo mágoas. No momento o que mais quero é fugir para algum lugar onde ninguém me encontre”. Suas lágrimas vieram aos olhos e desciam em silêncio por uma face sem brilho e enrugada antes do tempo. Agradeceu-me pela intervenção, comentou que o marido dela estava bem doente e partiu, sem despedida, enxugando os olhos. Alguns dias depois, fui informado de sua morte súbita, pouco tempo antes do horário do exame.
Ao cabo de muito tempo o segredo veio à tona. Tenho por hábito, iniciar a entrevista médica perguntando: o que o traz aqui? Certa vez a resposta veio de pronto e desvendou um mistério: “estou doente há quase dois anos e sinto minhas forças no final. Tenho dor no corpo, cansaço e quase todas as noites minha coberta fica molhada de suor. Fiz consultas em farmácias, frequentei igrejas, terreiros e até agora a moleza não foi embora. Minha mulher sofreu de alguma coisa igual, fechou a boutique, descansou o corpo uma semana e logo estava boa”. Durante a avaliação, despertou minha atenção suas mãos avermelhadas, pouco cabelo nas axilas e pedras no peito. Essas alterações insinuam doença crônica no fígado e dentre os exames solicitei biópsia.
Quando retornou, trazia a tiracolo Dona Flor, a mulher da boutique. Exuberante e de expressão insaciável. Vestia a vácuo, deixando transparecer curvas e rasgos atraentes. A blusa com decote abusado expunha a beleza do colo dos seios. Cada mulher é única, mas, ela vestia para provocar impulsos excitantes e intensos em todos. Era um verdadeiro gatilho erótico e tudo fazia para atrair olhares profanos, que hipnotizados voavam, sem exceção, em sua direção. A biópsia foi compatível com hepatite B crônica. Conversamos acerca da doença, com mais detalhes a pedido, sobre a transmissão e citei transfusões, alicates de unhas, agulhas fervidas e relações sexuais não protegidas. Procurei na mulher da boutique, sinais de tristeza, culpa ou qualquer perturbação emocional e nada disso encontrei. Exibia dramatização, teatralidade e exagerado sentimento leviano de haver sido traída pelo marido.
O objetivo maior do tratamento, sempre realizado dentro do protocolo de consenso atualizado, infelizmente não é alcançado em todos os casos. Encerrado o tratamento ele foi considerado não respondedor e alguns anos depois faleceu devido à complicações da doença, sem jamais atribuir culpa a Dona Flor da boutique, que ainda continua linda. (Aracaju, 07 de Fevereiro de 2018.)
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.