Quando as badaladas do sino ressoavam no Murilo Braga, todos obedeciam. A mensagem servia de orientação para início, fim e intervalo livre entre as aulas. Horário de estudos interrompido, os mestres dirigiam-se para o cafezinho na sala dos professores e os alunos recreavam-se nos corredores dos pavilhões das salas de aula ou nos arredores da cantina, já que o tempo disponível não permitia entretenimento demorado. Algumas vezes desejávamos um recreio sem fim, principalmente quando a próxima aula era francês ou ensino religioso. No curso de francês aprendi bonjour, bonsoir, dèjà vu e jamais vu, e, no ensino religioso tomei conhecimento de que não temos mais deuses em forma de animais. As badaladas concentravam excesso de poder e sua voz exigente era quase sempre cruel. Além de fazer a interrupção abrupta do recreio, vez por outra cerceava, pela raiz, emoções presentes na troca de olhares mágicos disfarçados à procura de um relacionamento mais complexo. Olhares que faziam meu coração bater aos pulos e minha respiração mais profunda. O sino, escravo do tempo, cumpria sua função

Ao retornar para a sala de aula, deparei-me com Zuzu e Bonito retirando as placas de identificação penduradas nas paredes sobre as portas. Fabricadas em madeira com formato retangular, pintadas em branco e preto, bem diagramadas e com escrita bem visível e compreensível, anunciavam a função de cada compartimento. Sentia-me ansioso diante de coisas das quais conhecia pouco, mas não tudo. Atraído pelo desconhecido, interrompi a marcha, por alguns minutos, para observar o trabalho que eles realizavam. Removiam a sujeira acumulada em cada placa com uma flanela umedecida de óleo. O pouco instante, foi suficiente para perceber a insatisfação refletida em cada face. Zuzu e Bonito nunca foram de muita disposição nem de coragem, eram funcionários demasiadamente lerdos e naquele momento achavam-se castigados e perseguidos com o serviço que efetuavam aos trancos e barrancos. Resmungavam, superficialmente, com mau humor o tempo inteiro: “não há tanta sujeira, as letras estão completas, não há necessidade de retoques e pensam que somos escravos ou burros de carga”. Enquanto blasfemavam desejando o inferno aos dirigentes da escola, apressei-me para chegar em tempo de assistir as demais aulas.

“Uma andorinha só não faz verão” e durante a noite fui ao encontro dos colegas na Praça da Igreja, dando de cara com Zé Valdi, Verinaldo e Vladimir. A cidade não tinha muito a oferecer aos jovens, sempre carregados com excesso de energia e imaginações férteis. Vez por outra, ocorria-me impulsos inesperados e incompreensíveis de imediato e queria viver tudo que desejava em um só dia. Conversei sobre o cenário da limpeza das placas e descrevi, sem alegorias, todos os detalhes guardados na memória, além de minhas percepções interiores. O relato estimulou no grupo, curiosidade e habilidade imaginativa de conceber novas motivações. Nosso mundo não era globalizado e nossas ações possuíam inspiração regional.

Entre nós havia perfeita afinação, ninguém tomava decisões sozinho, nenhum era maior do que o outro, entretanto, a criatividade nascia da sabedoria do mais discreto, e o irrequieto era o melhor executor. Da combinação de diversas sugestões sobressaiu a iniciativa de trocarmos as placas de lugar. As gargalhadas escandalosas traduziam nosso entusiasmo. Vestimos a fantasia, incorporamos o plano e sem reflexões nem ponderações, fomos, no silêncio da noite, ao Murilo Braga e a obra foi realizada com brevidade e perfeição. A sala do diretor passou a ser secretaria, o almoxarifado transformou-se em sala dos professores e o WC feminino sofreu mutação para WC masculino.

No dia seguinte, durante o primeiro intervalo, observamos cuidadosamente, com os olhos, nossa realização e todo movimento na escola. Não parecia haver nada de novo. Ninguém obedecia nem comentava sobre a atual disposição das placas e retornamos frustrados à sala de aula. A busca por prazer é muito antiga, vive dentro de cada um de nós, e, estávamos determinados a encontrar alguma forma de fazer da travessura um alvoroço feliz. Contudo, quando as regras são quebradas alguns ganham e outros perdem.

Nada como uma aula depois da outra. No segundo intervalo fiquei a corujar as meninas entrarem e saírem indiferentes no “WC masculino” e de forma repentina explodiu uma força inspiradora genial a impulsionar meu corpo. Acelerei os passos para encurtar o tempo e adentrei no sanitário obedecendo a sinalização correta daquele ambiente. A situação fugiu do comum: gritos assustadores pareciam vir do inferno, houve corre-corre, muitos empurrões e as meninas queriam passar pela mesma porta ao mesmo tempo. Uma delas com a toalhinha higiênica na mão, outra aflita vestia a calcinha e uma terceira forçava o zíper emperrado da saia. Apavoradas, pareciam em fuga de uma tentativa de violação sexual.

Na hora de deixar o WC, quase toda escola me esperava do lado de fora. Não podia respirar bem, minhas mãos estavam frias e tremulas, a pele pálida,  a fala entrecortada e a farda molhada de suor. Professores, funcionários e estudantes olhavam para mim como se contemplassem um demônio. No meio daquela multidão, estendi o braço e com o dedo em riste, acompanhado pelos olhos da multidão, apontei na direção da placa e perguntei: porque não avisaram às meninas? Espantados diante do esclarecimento e de minha inocência, iniciaram a dispersão. “Estou sofrido, amedrontado e esse é o pior momento de minha vida”. A ajuda espiritual veio de “Santa Lilia” (acolhedora, amável, pura e apaixonada pelo seu trabalho) que segurou minha mão, conduziu-me até a secretaria e confortou-me: “acalme-se, Zuzu e Bonito são homens de pouca leitura”. Aliviou meu corpo e minha alma com afagos e um copo grande de água com açúcar e maracugina. Dispensou-me das aulas seguintes, e, solicitou a Lúcia de Tumba levar-me para casa. O fato ganhou espaço definitivo nas rodas de conversas da cidade, por vários dias. (Aracaju, 26/12/2017)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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