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Nasci em choupana de palha coberta com capim próximo a um riacho.  Minha idade não sei exatamente, mas devia ter uns três ou quatro anos quando comecei a perceber as coisas em minha volta. Minha mãe e meu provável pai me levavam para o campo onde eles plantavam algumas lavouras para nosso sustento enquanto eu ficava em uma esteira brincando com alguns gravetos e ossos de animais. Foram bons tempos, pelo menos comíamos três vezes por dia e a sobra da colheita  acho que meu pai vendia em algum vilarejo vizinho. Anoitecendo dormíamos embalados pela orquestra dos insetos e animais noturnos.  Ao amanhecer acordávamos com a sinfonia dos pássaros. Chegou a seca, acabaram-se os alimentos, meu pai saía para procurar trabalho em outros sítios, quando encontrava trazia alguma coisa para comermos e quando não, chegava bêbado e maltratava minha mãe que devia ter 16 ou 17 anos, acho que não tínhamos parentes próximos de nossa morada e cada dia que passava as agressões aumentavam. Certo dia, ele não voltou para casa e nós chorávamos de fome, minha mãe colocou um pouco de sal em minha boca e me deu um pouco de água; adormeci. Quando amanheceu ela saiu pela capoeira correndo atrás de lagartixas, tirando as vísceras das mesmas, as assou em fogo de gravetos, foi nosso alimento naquele dia. No dia seguinte meu pai chegou com pouco alimento, muito bêbado e mais furioso que os dias passados, foi o dia que mais espancou aquela jovem senhora. No dia seguinte ele saiu antes do amanhecer, em seguida fui vestido com alguns trapos e minha mãe saiu quase correndo comigo nos braços. Andamos um dia no sentido contrário ao meu pai em um sol escaldante, dormimos encostados a uma algarobeira morta pela seca. Ao acordarmos aquela boa senhora pediu ajuda a alguns trabalhadores que encontramos e eles dividiram o que tinham conosco, água e um pedaço de rapadura. Caminhamos mais ou menos uns três dias dormindo sempre ao relento  até  chegarmos  a  um  sítio  onde tinha  algumas árvores verdes, a jovem procurou o proprietário, acho que pediu ajuda, ele nos deu alimento, água e repouso. No dia seguinte ela chorando colocou-me nos braços daquele senhor e recebeu da esposa do mesmo uma cabra e um jerimum, vi minha mãe se afastar em prantos, eu sem entender também chorava, chorei por vários dias. A esposa deste senhor procurava me acalentar, porém sentia falta do carinho materno. Este senhor tinha dois filhos mais velhos que eu, e com mais ou menos seis anos comecei ajudar nas tarefas do sítio; cortava capim, alimentava os animais, varria o quintal, sempre trabalhava mais que os outros e as coisas mal feitas eu levava culpa, então era castigado injustamente. Fui levando a vida até os 12 anos quando uma cabra fugiu e fui obrigado a procurá-la, ao encontrá-la coloquei-a no cercado onde levei uma surra daquele senhor. Antes do sol nascer juntei dois calções e duas camisas (ambos de saco), era toda minha roupa, fugi. Na caminhada procurava ansioso a choupana da minha mãe, nunca a esqueci. Por vários dias vaguei comendo frutos verdes e até folhas de árvores, cheguei a uma estação ferroviária, sentei em um banco com muita fome. Um funcionário ferroviário foi lanchar em uma barraca, fiquei olhando e quando ele mastigava eu engolia. Ele vendo meu sofrimento perguntou se queria lanchar, envergonhado contei minha situação, ele pagou meu lanche e foi embora. Dormi no banco da estação, fazia dias que não dormia tão confortável, no dia seguinte muito cedo aquele senhor apareceu e me perguntou se queria morar na casa dele, respondi que sim. Eu estava cambaleando de fome! Depois do café me explicou que era casado e não tinha filho, em sua casa morava com sua esposa e sua mãe, só poderia ficar se ajudasse nas tarefas caseiras; varrer o quintal, cuidar dos animais (patos, galinhas, cabras e um cavalo), e teria que estudar. Aos sábados fazer compras com ele, e aos domingos assistir a missa. Cheguei aos 16 anos ele me registrou como pais desconhecidos e me apresentou na marinha como voluntário. Continuei estudando e com 18 anos me tornei marinheiro. Conheci uma bela moça, logo fui pedir permissão a seu pai para namorar. Muito gentil permitiu, porém ditou as regras: teria que chegar a sua casa às 18 e sair no máximo às 22 horas, somente nas quartas-feiras, sábados e domingos. Os anos passaram, fiquei  noivo, meu  futuro  sogro  gostava muito de mim, teria  conquistado sua confiança, mas eu viajava muito. E ao chegar à casa da minha noiva seu pai queria falar comigo, rapidamente falou que estava muito doente, fez prometer-lhe que se ele viesse a óbito eu me casaria, e terminaria de criar minha cunhada como se fosse minha filha. No mês seguinte casei, dei baixa da marinha, arranjei um emprego. Foram dias difíceis! Dois anos depois minha cunhada casou e ficou morando próximo a nossa casa. Hoje tenho duas lindas filhas que jamais as trocaria por nada neste mundo, porém, fui trocado por um jerimum e uma cabra. Agradeço muito a Deus por toda minha vida, mas um dia, queria encontrar meus pais para agradecer-lhes por ter nascido.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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