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A morte midiática provoca tempestades na rede. Nossa militância de sofá sempre exige posts sobre o evento e há reações do exército inimigo e novos insultos e posts. O debate é sempre o mesmo: sobre quem devemos chorar? Quais os lutos válidos? Qual a vida que provoca falta?
Todos conhecem o processo. Mataram a pessoa A. Eu posto que a morte é um horror e a lamento. Imediatamente alguém responde: por que você não lamentou B? Ou C? Parece que, na cabeça da maioria das pessoas, o luto não pode ser por alguém, pois isso excluiria outras pessoas. Ao assumir o posto de cronista do Estadão, gravei uma entrevista na qual disse que sempre que eu lamentasse uma violência contra um grupo ou uma pessoa, não significaria que eu apoio o ataque a outros grupos e pessoas.
Alguns internautas fazem leituras polarizadas. No cotidiano, seria como elogiar a roupa de alguém em um dia particular. A pessoa poderia se ofender: se ela está com uma roupa bonita hoje, isso só pode significar que ela é maltrapilha nos outros dias. Se escrevo sobre o Holocausto de judeus, recebo ataques: e a morte de palestinos? E de armênios? Por que você não fala do massacre de indígenas? Naturalmente, na cabeça de muitos, todo texto deve começar e terminar com a lista de todos os crimes desde Caim. O espaço não colabora para que possamos enumerar sempre todas as vítimas. Quero sempre repetir: sou, como quase todo humanista, contrário à pena de morte e a violências contra grupos de todos os tipos. Lamento todos os milhares de policiais que, no exercício da sua função, perdem a vida. Lamento a morte de sírios, de israelenses, de palestinos, de moradores de comunidade e de pessoas de classe média alta nos Jardins. Direitos são humanos, ou seja, valem para todos, inclusive para criminosos presos. Sigo a tônica do documento assinado pelo Brasil na ONU: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. A palavra-chave é universal. Basta “ser humano” para ter direito ao direito. Eu, sem ficha policial, trabalhando 16 horas por dia, digno do ambíguo título de “homem de bem” não tenho mais direitos humanos do que um traficante. Ainda que o traficante deva ser processado e punido, ele continua dotado de direitos humanos. Deve ser julgado e encarcerado em caso de comprovada sua atividade criminosa. Porém, em nenhum momento ele deixa de ter direito a um habeas corpus ou perde a proteção de todo cidadão pela Constituição de 1988, que proíbe tortura em qualquer ser humano.
Volto ao tema. Imagino, em era de internet, o assassinato de Jesus de Nazaré. Um grupo de internautas dizendo: crime, violência, tortura! Outro grupo desdenhando: ele vivia entre criminosos (o primeiro a entrar no paraíso com ele seria um bandido!), disse que a adúltera não deveria ser punida, criticava gente de “bem” (fariseus e saduceus). Acima de tudo, Jesus nunca chorou pela morte de um soldado romano. Hipocrisia chorar pelo marginal que morreu na cruz! Coisa de militante de extrema esquerda que deseja politizar a morte de um outsider. E os soldados romanos assassinados por radicais em Israel? Ainda bem que Jesus ressuscitou antes da internet.
Tão talentosa em tantas coisas, Hebe Camargo disse no ar, certa vez, que os “direitos humanos deveriam ser para humanos direitos”. A falácia faz sucesso, mas é um grave equívoco. Direitos humanos para todos os seres humanos, inclusive para quem desdenha deles ou que comete infrações. Os direitos humanos são para a sociedade entender que toda exclusão de uma vida do rol das existências defensáveis tem o dom de banalizar a própria vida e diluir a fronteira que nos separa da barbárie. Falamos de direitos universais para que o mal não atinja todos. É quase um gesto de egoísmo, pois significa que qualquer relativização de direitos humanos é uma maneira de eu despertar o ovo da serpente, liberar a violência de aparatos repressores que, historicamente, deixam de reconhecer contenção. Ao defender a dignidade básica como valor universal, eu abro uma brecha na represa do ódio que, com certeza, vai encontrando novos espaços para fluir. Em nenhum momento isso significa defesa do crime. Toda a sociedade deve ser implacável na prisão e julgamento de criminosos comprovados. Lutar contra o mal é lutar contra o conceito em todas as instâncias, desde o criminoso em si até o das forças policiais e do Estado. O relativismo no campo da lei cria monstros e é a gênese de todo fascismo.
Quem deve viver? Todos os seres humanos. Quem deve ser punido com a perda da liberdade? Todos os que infringem uma lei clara e votada pelo Parlamento. Nunca se pode defender um criminoso quanto ao crime, seja ele um traficante violento ou um agente fardado. Nunca se pode defender o crime, mas sempre se deve defender o ser humano. Se alguém não entende isso e acha que é comunismo, eu invocaria teoria mais antiga, a do mesmo Jesus já citado. Pelo contrário, em regimes comunistas, quase todos autoritários e violentos, o crime era encoberto pela proximidade do ditador. Lá a lei era relativa e os amigos do poder faziam o que desejavam e os inimigos eram executados ou encarcerados em Gulags. São as sociedades autoritárias socialistas como na era de Stalin, de Fidel Castro ou de Mao que encarceram com violência e consideram que o dissidente não tem direitos humanos. No socialismo histórico, muitas vezes, a noção de que todos eram iguais, mas alguns eram mais iguais do que os outros (célebre crítica orweliana) era a regra. Ditadores como Pol Pot, no Camboja, repetiam aos prisioneiros: “Sua vida não é importante”. Só a barbárie de uma ditadura homicida é que faz a distinção de vidas que merecem e as que não merecem sobreviver. O mesmo ocorre em ditadura de direita, como Pinochet no Chile ou Trujillo em Santo Domingo. Ditadores de direita e de esquerda são adeptos da divisão da sociedade entre cidadãos de bem (aqueles que seguem as ordens do Estado) e criminosos que não têm direitos (aqueles que discordam do Estado).
A partir do século 18 passamos a falar de direitos humanos com mais força. Há dois pilares nas democracias que crescem a partir da Revolução Francesa. Um é a isonomia diante da lei, típico de regimes abertos e inexistente em regimes fechados. A outra é a universalização dos direitos humanos, algo que protege todos. Só com essa convicção absoluta poderemos lutar contra o crescimento do crime. Só assim temos esperança de mudar a situação de calamidade. Lutar contra marginais deve ser feito de forma a não nos tornar um deles. Vencer o crime com o preço de virar criminoso é uma vitória duvidosa que apenas substitui o local do desvio. Isso impede que a gente viva imerso no espírito da mentira, pois hoje é primeiro de abril. Bom domingo para todos nós, inclusive para os homens de bem.
Publicado O Estado de S.Paulo | 01 Abril 2018
Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP. É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria inúmeros livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ , “Conversas com um jovem professor” e outros. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.