Um domingo desse, me surpreendi, durante o café matinal, a ouvir Anísio Silva: “Deixe-me beijar tuas mãos, minha querida”. Era ouvindo, e, automaticamente, acompanhando com os dedos na mesa a canção, cuja letra estava bem viva na minha memória, de maneira que bastou um toque para que, do fundo do mais escondido sítio do meu baú, a letra saísse, quase que completa. E só aí, num momento de reflexão, percebi que minha predisposição para decorar uma letra e cantá-la teve seu encerramento ainda na década de sessenta, a ponto de, a partir desse período, não ter conseguido me interessar por nenhuma letra, especificamente.

A prova, outra prova – como julgador reclamo muita prova para a sedimentação do fato na sua explicação – remontava ao dia da morte de Vinicius, idos de 1982, salvo engano, quando ouvia o Jornal Nacional e me surpreendia com algumas letras, familiares ao meu ouvido, embora não me arriscasse a cantá-las, serem de sua autoria. Vinicius compositor, além de poeta e cronista, e eu, verdade reconheça, não sabia, revelação que bem me situa distante, completamente distante, de toda música que surgiu a partir do final da década de sessenta. Se o fato for suficiente para não ir ao céu, depois de morto, não terei que admitir outro destino senão o inferno, me arriscando a encontrar o Diabo como os mesmos gostos musicais e com ele fazer um bom dueto à antiga.

Brincadeira à parte, que o momento é de seriedade, o meu acervo musical é o mais velho possível. Basta à citação de Anísio Silva, que aparecia cantando nos filmes da Atlântida, sobretudo porque não tinha um deles em que, de repente, um cantor não surgisse cantando alguma coisa, como se fosse uma norma que nenhuma película poderia deixar de obedecer. E vem Carlos Galhardo – que aprendi a gostar por força da admiração de minha mãe -, Silvio Caldas, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Caubi Peixoto, Maysa, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, e alguns outros poucos gatos pingados, que, se tivesse de me submeter a um teste de conhecimentos acerca dos cantores que apareceram depois, por certo, não teria nota superior a dois.

Pois é. Ignorância quase que completa. Tanto que, um dia, aguardando vez na balsa, que ligava a Caueira ao Mosqueiro, em terras sergipanas, ao ouvir o som alto, estridente e desarmonioso que um carro, com o porta-mala, deixava, estupidamente, exalar, para a infelicidade dos que estavam por perto, perguntei a um amigo, ao meu lado, que desgraça era aquela, recebendo a resposta de se cuidar de pagode. Para mim, pagode era festa grande, almoço para muita gente. Outra prova de aquilo tudo me era bem estranho, como, aliás, continua.

Abro exceção, e, bem especial, para Cláudia Leite, nas suas apresentações pela tv, sobretudo quando se apresenta com roupas curtas e apertadas, o que me deixa sem saber se aprecio a música ou os seus passos e a escultura de suas formas. Dúvida atroz, poderá ser dito. Com inteira razão. Meu pai assistia aos programas de Chacrinha só para ver as chacretes.(02.01.12)

 Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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