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Mas a verdade é que eu adorava quando a escola ficava vazia. Ia para lá, ajudar à mestra de classe, nos preparativos do material da sala, vagar nos enormes dormitórios com aquelas raras meninas, que eu julgava  “esquecidas” por seus pais e que para mim só podiam ser comparadas  às intérpretes de filmes dramáticos. Maria Aparecida Gentil Philomena Gomes – creio que era esse o nome de uma amiga muito querida, a quem fiz companhia num verão daquela infância longínqua, quando o enorme relógio do centro do prédio, batendo compassado as horas certas e as meias-horas fazia ecoar a solidão dela em meu peito,  despertando cada vez mais, em mim, os sentimentos de solidariedade e responsabilidade de educadora precoce, que eu já me anunciava ser.

Não tenho dúvida de que o Colégio Sion foi muito importante para que eu me tornasse uma educadora dedicada. Ajudar as colegas que tinham dificuldades de aprendizagem, para impedir que fossem magoadas por Mère Marilena, uma mestra de classe que conseguia ser ao mesmo tempo tão amável comigo e tão severa com algumas  outras alunas, não hesitando em expor seus erros impiedosamente, levou-me mais tarde a pensar nas diferenças dos ritmos pessoais,  como um desafio pedagógico a encarar.

Questionar a implacável Dona Elfrida com seus infames mapas-mudos ou conviver com  a realidade de existir uma salinha repleta de valiosos presentes que  Mère Dieudonnèe ganhava dos pais das alunas e colecionava com orgulho indisfarçado, pode ter me custado a perda da convivência com amigas queridas, quando decidi lutar para ir para uma escola pública, em busca de convivência mais democrática,  mas ao mesmo tempo fortaleceu  a formação de minha personalidade e permitiu que minha intuição me guiasse, em busca de caminhos educacionais mais compatíveis com os novos tempos, que já se anunciavam, então.

Da mesma forma, participar, com pouco mais de 8 anos das primeiras experiências do ensino de análise sintática nas aulas de linguagem das classes iniciais; ser capaz de interpretar com profundidade os textos dos evangelhos desde a segunda série; ser estimulada a prosseguir no trabalho árduo de organizar e dirigir, praticamente sozinha, os teatros de classe, foram, sem dúvida, oportunidades pioneiras que o Sion me ofereceu e  que marcaram minha trajetória. Me perdoem, Tareca e outras colegas mais tímidas, a minha rigidez de então, na busca da perfeição, fruto de imaturidade e exemplo nem tão bom.

Embora muito comportada e obediente a princípio, capaz, por exemplo, de aprender durante o curto espaço do recreio matinal a técnica de  fazer a prova real das contas de aritmética, só para não ser sacudida por dona Nicolina, (como vi acontecer com outras meninas, logo nos meus primeiros dias de aula), passei a expressar desagrado quando, crescendo um pouco mais, percebia que nem todas as normas em vigor era assim tão justas.

Estranhava que houvesse um Sion dos pobres separado do nosso e que a gente nunca devesse chegar perto da cozinha, onde, por acaso, um dia, na liberdade de transitar que eu tinha no tempo de férias,  descobri que trabalhavam religiosas negras. Coincidência ou não, o fato de as coisas aparentemente menos “nobres” nos serem vedadas, causava-me estranheza. Ver as “Martinhas”, meninas como nós, limpando os corredores incessantemente, enquanto nós passávamos por ali, como princesas, me provocava desconforto e, pouco a pouco,  foi-me gerando uma certa insegurança, por não conseguir entender direito as regras daquele “jogo” em que estava inscrita e do qual participava compulsoriamente.

Uma vez, Monsenhor Alvarado, o velho  e doce capelão espanhol, com sua infinita doçura, ao ser chamado para me repreender por eu ter sido surpreendida escondendo vários pedaços de melancia na hora da sobremesa, acabou achando graça da situação. Ele sabia diferenciar uma arte de criança de uma infração ao código vigente. Sempre tinha uma palavra de estímulo e de compreensão, ainda quando as meninas mais afoitas perdiam, nas assembléias dos sábados, a cruz e até o cinto! Por isso, por guardar dele uma lembrança de  coerência irrefutável, tantos anos depois, foi a ele que escolhi para batizar meus filhos, em cerimônias particulares. E ele as oficiou,  fazendo, de cada gesto seu, naquelas ocasiões, uma lição da mais pura religiosidade: a que brota do fundo do coração.

Foi  no Sion,  que descobri, também,  entre sussurros envergonhados, como a vida brotava nas mulheres. Foi durante uma aula de religião, logo no meu primeiro ano no colégio. O evangelho da Anunciação fora lido e eu perguntei espontaneamente, em voz alta, como Maria exultara o Menino que tinha no ventre, ao encontrar Isabel, se Jesus ainda não havia nascido. Todas as meninas riram da minha pergunta. Vendo-me desconcertada,  Soeur Cecília, nossa mestra,  me pediu que a procurasse depois da aula e, então, me falou que os bebês ficaram dentro da barriga de suas mães, até nascerem. Dali, para que eu quisesse saber como entravam no corpo da mãe, foi um pulo. Mas, então, a explicação veio das próprias colegas. Tempo bom de um despertar gradativo e em que havia a oportunidade do conhecimento chegar trazido pela curiosidade e pela dedução naturais.

A morte também me foi apresentada no colégio. Uma das irmãs faleceu e sua missa de corpo presente me permitiu ver, pela primeira vez uma pessoa morta. Sem mistérios desnecessários. Com respeito ao ciclo ininterrupto a que todos nascemos submetidos.

Por tudo isso sou grata. Grata a meu pai que não titubeou em se sacrificar, trabalhando muito para nos oferecer um colégio tão bom; a minha mãe que se encarregou de estimulá-lo nesse sentido e nos acompanhou diariamente, nas exigências da nova vida;  e ao Sion que me permitiu ser eu mesma, quando desenvolveu em mim o espírito crítico, através de um ensino de qualidade inquestionável, capaz de  expandir nossa compreensão do mundo.

Saí do colégio aos 11 anos, mas ele não saiu de mim até hoje. Posso ainda sentir o gosto daquele  pão gordo feito lá, que nos era servido no lanche da saída, junto com a tigela branca de café com leite. E nunca vou esquecer o prazer que me dava comer o pão com chocolate, ou o pão com presuntada,  que eram guloseimas extraordinárias, vendidas  na hora do recreio da manhã.

Sabor de infância, que se juntando a muitos outros, traz de volta a sensação de abrigo e continência, resquício de uma época  onde espaço e tempo ainda pareciam caminhar paralelamente.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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