(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio)
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Há cinquenta anos, em Memphis, Tennessee, um homem foi morto a tiros na varanda do hotel em que se encontrava hospedado. O homem era negro. O homem tinha um sonho. Liderava um grupo de homens e mulheres que aumentava a cada dia e se convertia em multidão. Organizava eventos e marchava silenciosa e pacificamente em protesto contra a violência racial e o desrespeito aos direitos humanos em seu país. Mataram o homem, mas não o sonho. O homem se chamava Martin Luther King Jr.
Quando esse pastor batista e doutor em Teologia começou sua caminhada em prol da igualdade racial e da paz, o racismo em seu país era lei e não crime. Uma lei que cavava uma fenda profunda na sociedade estadunidense, mantendo os negros separados dos brancos nos transportes públicos, nas instituições de ensino, nos restaurantes, banheiros. O sonho do pastor negro era que essa discriminação tivesse um fim de forma pacífica e não violenta.
Na origem desse sonho de paz e liberdade está o gesto de uma mulher: Rosa Parks, aquela que um dia, ao voltar do trabalho em um ônibus, sentada na parte do veículo proibida aos negros, recusou-se a ceder seu lugar a um homem branco. Foi presa e penalizada, mas seu gesto de desobediência fez com que cinquenta líderes da comunidade afro-americana, chefiados pelo então quase desconhecido pastor Martin Luther King Jr., reagissem à violência contra ela cometida.
O movimento organizou e deflagrou um boicote de 381 dias ao sistema segregacionista de ônibus do Alabama. A partir daí seguiu-se a luta dos negros norte-americanos contra a segregação e pelo respeito aos direitos, do qual a estrela foi o Pastor King., que se tornou um ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e ganhou o Prêmio Nobel da Paz anos depois.
Sempre reconhecido àquela que havia sido o agente detonador de seu movimento, Martin Luther King Jr. dizia: “Na verdade, ninguém pode compreender a ação da Sra. Parks, a menos que realize que eventualmente a taça da capacidade de suportar transborda e a personalidade humana grita: “Eu não posso mais aguentar”.
Em 1963, o pastor negro continuava seu movimento, reivindicando pela igualdade de direitos de todos, pelo fim da discriminação racial e pela paz. Suas marchas eram cada vez maiores em volume e em consistência. Naquele ano a marcha sobre Washington, a capital do país, convocava 250 mil pessoas. Aí Luther King falou de seu sonho. O sonho da igualdade e da liberdade.
Disse sonhar que um dia os filhos dos descendentes de escravos e dos descendentes de donos de escravos pudessem sentar-se juntos à mesa da fraternidade. O pastor vivia um momento difícil, com ameaças, frustrações. Sentia o conflito que se armava ao redor de sua pessoa. Mas sonhava para as gerações futuras. Sonhava com a possibilidade de que seus quatro filhos pudessem viver em uma nação onde seriam julgados por seu caráter e não pela cor de sua pele.
O sonho de Luther King era recheado de liberdade e comunhão. Sonhava em fazer chegar mais rápido “o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar…” Sonhava o sonho que sonhou também Jesus de Nazaré e tantos profetas antes dele e tantas testemunhas depois dele.
No dia 4 de abril de 1968, um tiro penetrou no rosto do pastor negro. Matou o homem, não o sonho. King entrou para a história não apenas pelo que fez, mas também e talvez principalmente pelo que sonhou: um mundo onde ninguém seja discriminado por sua raça ou pela cor de sua pele; onde todos tenham direito de voto e acesso a empregos e serviços públicos; onde todos e cada um possam dizer livremente aquilo que creem e praticar o que acreditam. Um mundo onde a paz não seja apenas a ausência de guerras, mas situação vital e dinâmica construída no diálogo e na interação franca e transparente.
O sonho do Dr. King continua, mais vivo que nunca, cinquenta anos após sua morte. Continua nos grupos afro americanos que seguem lutando por igualdade e enfrentando as discriminações de que são objeto. Faz-se visível nos jovens migrantes, chamados sintomaticamente de “dreamers”, que reivindicam seu direito de sonhar com a cidadania no país que escolheram para viver uma vida melhor. Vive em todo homem e mulher que em qualquer continente ou latitude deseja a justiça, a igualdade e a liberdade e luta para que aconteçam.
Nestes cinquenta anos, muita coisa caminhou e o sonho se fez parcial realidade. O país do pastor King teve a alegria de votar e aclamar um presidente negro na Casa Branca. Pelo mundo, Nelson Mandela saiu da prisão e deslanchou o movimento de reconciliação nacional na África do Sul. Porém, o racismo não morreu. Fez-se presente nos diversos episódios racistas acontecidos não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil, onde a vereadora Marielle Franco foi assassinada por defender os direitos dos jovens negros das comunidades de sua cidade a viver.
Por isso, celebrar os 50 anos do assassinato de Martin Luther King não é apenas recordar sua exemplar biografia, mas tratar de inspirar-se em seu testemunho e nele aprender. Importa ouvir hoje o que sua voz trovejante e lúcida dizia há 50 anos. E continuar sua luta, carregados pelo sonho que faz com que a morte de um seja semente que frutifica na vida de muitos.
Obs: Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.
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