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A coisa não fazia sentido. Não chegava a ser carta. Um bilhete, escrito numa folha de bloco amarelo, rasgada pelo meio. O nome que a assina­va não me fazia lembrar ninguém. Vinha de algum lugar dos Estados Unidos. Pensei que se tratava de mais uma dessas pessoas estranhas que escrevem coisas sem nexo para desconhecidos.

Por alguma razão que eu ignorava eu fora escolhido. Dois dias depois uma carta de um amigo me explicou o mistério. O bilhete me fora enviado de uma prisão. O preso tinha sido executivo de uma multinacional. De repente, não mais que de repente, se deu conta de que a vida era muito breve e que a sua verdade mais profunda era outra.

Aquilo que estava fazendo não era o que desejava fazer. O que ele amava, mesmo, era a natureza com suas belezas e misté­rios: o silêncio das montanhas cobertas de neve, as matas com suas árvores e seus bichos, os rios de águas transparentes. E no entanto — ele o sabia — por todos os lados os homens de guerra a haviam violentado, enchendo-a de instrumentos de morte: fábricas de bombas nucleares, fortalezas subterrâneas onde se aninhavam foguetes cheios de morte. Que lhe adiantava entregar sua vida ao enriqueci­mento de uma multinacional se este mundo, nosso lar, poderia, a qualquer momento, ser transformado numa imensa solidão: os homens mortos, as florestas queimadas, as montanhas solitárias, os rios correndo transformados em veneno? Demitiu-se. Pensaram que um emprego melhor lhe tinha sido oferecido. Quando contou o que iria fazer julgaram­-no louco. Desfez-se de tudo o que tinha: é preciso leveza, nada que segure. Colocou as poucas coisas que lhe eram necessárias numa mochila: pode-se viver com muito pouco. Entre suas coisas, dois ou três livros: é bom caminhar com aqueles que sonham os mesmos sonhos, ainda que estejam distantes e o que deles se tenha seja apenas o que escreveram. Assim, mesmo longe, se forma a companhia dos conspiradores, pessoas que respiram o mesmo ar — com-inspirar. Ficamos amigos sem que nunca nos tenhamos encontrado. Sem ter casa fixa, juntou-se a um grupo de pacifistas. Mas, o que pode um grupinho insignificante contra o poder da morte? Muito pouco. Mas não importa. É preciso obedecer à voz interior da verdade. Contra a loucura forte dos homens de guerra só resta a loucura mansa dos homens de paz.

Passaram, então, de forma obstinada e tranquila, a fazer uma única coisa. Invadiam pacificamente as instalações nucleares norte-americanas, caminhavam na direção dos lugares onde se fabricava a morte, e se assentavam nos locais rigorosamente proibidos. Para quê? Só para dizer a sua verdade. Que prefeririam morrer a matar.

Que a derrota militar é preferível à destruição do mundo. Mil anos de cativeiro são preferíveis a uma vitória nuclear. Pois no cativeiro permanece a esperança de que a vida poderá nascer livre de novo. Mas numa vitória nuclear só sobrarão os mortos. A vida é um valor mais alto que as ilusões da guerra. Seu gesto manso durava pouco porque a morte não anda a pé. Logo chegavam os soldados armados que os levavam presos. E eram condenados pelos tribunais, por sua lealdade à verdade.

Aquele bilhete esquisito me viera de uma dessas prisões. Dois anos atrás me escreveu de novo, de outra prisão. Seria libertado no dia seguinte e me dizia da sua alegria, pois dentro de poucas horas poderia de novo ver os céus estrelados. Contou-me o que acontecera. Ele e seus amigos haviam resolvido repetir o mesmo gesto. Iriam se assentar sobre os silos atômicos — os lugares onde os foguetes ficam guardados, em posição de disparo — de uma instalação nuclear localizada no norte dos Estados Unidos. O lugar era lindo, paraíso, reserva florestal cheia de todas as formas de vida. Por uma semana ali ficaram, gozando a beleza das matas, dos animais, dos rios. Descreveu-me as aves e os bichos. Disse-me da alegria mística que tal comunhão com a natureza lhe dava: sentimento muito próximo do sagrado — pois a natureza está cheia de beleza e de mistérios. Depois de uma semana todos caminha­ram para os silos, assentaram-se sobre eles, e em poucos minutos estavam todos presos. No ano passado, duas semanas antes da Semana Santa, escreveu-me contando que iriam fazer coisas semelhantes no Domingo de Páscoa, para testemunhar o triunfo da vida sobre a morte. E agora, de novo fora da prisão, escreveu-me de um mosteiro trapista, no alto das montanhas rochosas. Preparava-se para subir até os lugares mais altos, para usufruir uma semana de solidão e silêncio. Para longe do falatório, para perto da tranquilidade onde se pode ouvir a voz da verdade interior.

Longe, sem nunca tê-lo visto, ele me ajuda a viver. O mundo está cheio de pessoas simples e nobres, capazes dos gestos mais loucos por pura fidelidade à sua verdade. A vida, pelo mundo todo, e a despeito da morte que vai comendo corpos, florestas, mares e rios, continua a se afirmar teimosamente como uma planta que nasce numa fenda de rocha. Como a minha “Glória da Manhã”, que a morte cortou e continuou a florir, o Ladon Sheats (este é o seu nome) teima em florescer…(18/05/2014)

Obs:  Ver AUTORIZAÇÃO do Instituto Rubem Alves no item  OBRAS LITERÁRIAS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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