A reconstrução resultou da articulação de
lembranças do passado e experiências atuais.

Euclides Paes Mendonça

Recebeu apenas uma educação rudimentar, mas, sua inteligência e astúcia permitiram-lhe sobrepor-se a seus correligionários udenistas. Expansivo e com humor persistentemente elevado, discursava nos palanques com gestos grosseiros e espalhafatosos.

Era obstinado pelo poder e, quando necessário, utilizava métodos atrozes para alcançar o objetivo desejado. Nunca encontrou justificativa para entender o mundo a partir de qualquer ponto de vista, exceto o de suas próprias convicções. Pensando e agindo como “Rei Sol”, falha em adaptar-se às normas e comportamentos legais, viola princípios e direitos sem a preocupação com o efeito de suas atitudes sobre os outros. Ele próprio era o seu maior espectador mais maravilhado. Vencedor, via sua cabeça aureolada de raios a fascinar os eleitores. Sentia-se superior e adorava demonstrar sua incontestável capacidade de liderança e domínio. Ele, deputado federal, elegeu José Sizínio de Almeida prefeito municipal e Antônio Oliveira Mendonça, seu filho, deputado estadual. Acometido por surtos irrefreáveis de grandeza, fazia investimentos financeiros que lhe rendiam lucros consideráveis, responsáveis pelo crescimento fantástico de seu patrimônio.

Assim era Euclides Paes Mendonça.

Sobre o seu fuzilamento

Relembrando com extremo cuidado o incidente de 8 de agosto de 1963, que resultou nas mortes de Euclides Paes Mendonça e de seu filho, Antônio Oliveira Mendonça, torna-se indispensável, reviver situações anteriores a essa data, impregnadas com riscos de explodirem em violentos massacres, fundamentais e inspiradoras para a orquestrada emboscada fatal. É, também, importante a descrição do panorama, à época, do Município de Itabaiana.

Situação primeira

Pedro Paes Mendonça, contra a vontade de seu irmão Euclides, se aproveita do projeto do deputado Filadelfo Dória, para liderar um movimento destinado elevar à categoria de cidade o povoado Moita Bonita. Proposta somente viável com a incorporação de parte do território de Itabaiana, além de duas a três centenas de eleitores. A perspectiva de aprovação do projeto de lei pela Assembleia Legislativa era muito grande e representava um duro golpe para Euclides, um político habilidoso que jamais perdia de vista seus objetivos e que veria reduzidos os seus domínios.

Na luta pelo poder entre os dois irmãos, Júlio Cego, um “segurança” de Euclides, é assassinado. Os acontecimentos lançam-no numa crise de insatisfação e profunda cólera. Sentia sua autoridade arranhada e planejava revidar ao seu estilo. Não há como saber, com exatidão, o que se passa na mente do agressor ou da vítima e houve temor generalizado de que a rivalidade, cada vez mais acentuada entre Euclides e Pedro, viesse a provocar uma sequência de atos violentos. A verdade é que nunca saberemos se houve abrandamento ou expansão clandestina da fúria entre os divergentes.

Alguns meses após a morte de Euclides, a primeira eleição é realizada em Moita Bonita e Pedro Paes é eleito seu primeiro prefeito.

Situação segunda

Nesse período, dois partidos lutavam pelo governo do Estado. A União Democrática Nacional – UDN, liderado por Leandro Maciel, aliado de Euclides, e o Partido Social Democrático – PSD, responsável pela eleição de Seixas Dória. A UDN é derrotada. Foi um golpe amargo e doloroso na travessia difícil iniciada na vida de Euclides.

A transferência de poder tem seu começo sem grandes traumas, até a força policial do Estado ser retirada de seu controle e os militares, condicionados a lhes prestar continências todas as manhãs, serem deslocados para Aracaju. Desprestigiado e desgostoso estava mergulhado, temporariamente, numa crise de insatisfação. Entretanto, prodigioso artífice, realiza manobra esperta e consegue incorporar à guarda municipal seus colonizados policiais. Com isto, recupera sua autoconfiança quando volta a demonstrar à população, possuir “força de manutenção da ordem” em suas mãos.

Itabaiana passa a contar com a polícia estadual, orientada pela Secretaria de Segurança, e a Guarda Municipal, sempre fiel aos impulsos inquietantes de seu patrono. Não há demarcações dos limites de ação e as duas organizações disputam e exercem as mesmas atribuições.

À medida que os dias se sucedem, fica mais evidente ser a guarda municipal uma afronta à honra da polícia. Essa situação torna-se insuportável e bastante instável, gerando uma convivência entre desafios e desentendimentos. A população teme que os ânimos se inflamem e resultem em violência e massacre. As tensões continuam a crescer e atingem seu auge na noite de 21 de abril de 1963, quando Polícia e Guarda Municipal se encontram, cara a cara, na Praça da Matriz. Ocorre um rápido e áspero diálogo, seguido de demorado tiroteio. Uma verdadeira batalha. A morte do Major Teles define a vitória da Guarda sobre a polícia, do município sobre o Estado e da UDN sobre o PSD.

Situação terceira

Panorama do município: Itabaiana sempre foi município agrícola e seu comércio estava em franco crescimento. A cidade impulsionada pela extraordinária visão desenvolvimentista de Euclides passou a ser referência em oportunidades diversas para as populações de outras regiões, ocorrendo imigrações. O prefeito era José Sizínio de Almeida. Governante de honestidade inquestionável, sereno, correto, sempre honrou seus compromissos e o nome de sua família. Udenista fervoroso, evitava questionar, participar ou intervir nas ações de Euclides.

O abastecimento de água, procedente de três pequenas lagoas (tanques do Povo, da Santa Cruz e da Pedreira), estava para ser substituído por “água mineral”, encanada da Ribeira. As tubulações já estavam espalhadas pelas ruas. As notícias divulgadas aos estudantes eram de que a distribuição da água seria realizada por empresa ligada a Euclides. Sem maldade em relação a ninguém, os estudantes estavam convictos da necessidade de uma tomada de posição. É marcada uma passeata. Um movimento pacífico com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população com “Água para todos”. Euclides e seu filho Antônio, em momentos distintos, intimidaram os organizadores prometendo usar os meios necessários para interromper o movimento.

Depois de diversas intimidações, os estudantes queriam entendimento, harmonia e paz na cidade. Djalma Lobo, Tonho de Doce, Sizínio, Euclides e Major Hermínio se reuniram em busca de consenso. Euclides não soube reconhecer a grandeza dos presentes e a determinação dos estudantes. Discorda de tudo e em tom áspero de se fazer obedecer, ordenou ao major: não vai haver passeata. Prepare seus homens e eu preparo os meus. E retirou-se.

Cada indivíduo tem uma vulnerabilidade específica e reage de forma diferente quando submetido a determinado estresse. Não responder às ameaças era a arma mais efetiva e poderosa para manter o ambiente em paz. A passeata foi mantida, todos conscientes de que se houvesse alguma confusão, isso favorecia a Euclides, acostumado a considerar os estudantes indisciplinados e desordeiros. Os estudantes solicitam proteção à Polícia. É o elo esperado e indispensável para a fabricação ardilosa e completa do evento final.

Manifestação e Evento Final – 8 de agosto de 1963

O notável efeito das intimidações foi a disseminação de insegurança e medo entre os estudantes e seus familiares. A cidade temia que o descontentamento de Euclides desencadeasse ondas de conflitos, tornando o clima mais tenso, à medida que se aproximava a hora das manifestações. A cada instante crescia o número de pais pessimistas em relação ao futuro da passeata. Como parte desse grupo, na manhã do evento, minha mãe, com o dedo em riste, advertiu-me: “Não vou permitir, admitir ou tolerar você juntar-se a quem vai insultar Euclides. Essa passeata do PSD não vai dar certo.” De modo inconsciente, mas com finalidade precisa, independente de aprendizado, seu instinto de mãe podia anteceder os acontecimentos. Desprezo a proibição e a presunção e despido de malícia, fui ao “encontro de contas”.

Grupos de estudantes e membros da comunidade local se organizam na área descoberta do Ginásio Murilo Braga. Estimam-se entre 300 e 400 o número de manifestantes e 15 a 20 policiais bem armados, entre os quais um sargento magro, alto e branco, aparentando 30 anos, porta uma metralhadora e pergunta a quem se aproxima, sobre a disposição e a coragem em acompanhar a passeata.

Entre 14 e 15 horas, a passeata sai do ginásio em direção ao centro da cidade. As adesões são inferiores às expectativas. Quase todas militantes do PSD. Um jeep com som conduz os estudantes com faixas do tipo: “Água é saúde”, “Queremos água”, “Água é progresso”. Depois de ter percorrido várias ruas, nas proximidades da Rua do Vapor, Toinho do Bar sugere o retorno à Praça da Matriz. Quando a passeata alcança as mediações da construção do Banco do Brasil, o deputado estadual, Antônio Oliveira Mendonça, coloca-se em frente ao movimento e começa a fotografar.

Trava-se, então, “bate boca”:

Senhor de Néu em voz alta, grita: o retrato é pra mandar bater depois.

Antônio contesta: cabra safado.

Toinho do Bar intervém: bota por cima.

Antônio ordena: leve os meninos de volta.

Outros dissidentes da UDN metem-se de permeio na discussão como verdadeiros ecos.

A provocação verbal serviu como poderoso aliciador de respostas agressivas, com poder inquietante cada vez mais intenso. Em face do perigo, Euclides aparece para apaziguar os ânimos exaltados. Encontra dificuldades para retirar seu filho que ousava resistir à vontade do pai e insistia em permanecer no conflito. Insultado, entra no bate boca gritando com as mãos para cima: “vá pra merda, vá pra merda”. Despreza uma base lógica e nítida, penetrando no cenário fabricado para a situação inflamável que estava formada.

O preço de uma precipitação, naquele momento, poderia resultar na morte de muitos adolescentes. Ouvem-se duas a três séries de tiros por rajadas e em poucos segundos, na praça permanecem apenas Euclides e Antônio (como alvos), a polícia e a turma do bate boca. Tudo foi muito rápido, e depois de alguns minutos as armas não emitiam sons.

Entro no bar de Tonho Lima, pulando cercas e muros, vou parar no bar Brasília, onde encontro Senhor de Néu ferido (fogo amigo) no ombro e um desconhecido apertando o ferimento com a toalha de sinuca. Rosângela Lôbo distribui tacos, estimulando os presentes a voltarem a protestar na praça. Saio do bar e através da Rua da Vitória, Largo da Feira, Rua das Flores e Beco do Cisco, volto à Praça da Matriz pelo oitão da Associação Atlética de Itabaiana. Parece haver transcorrido um século, o tempo desde as primeiras rajadas de metralhadora com dispersão da passeata, minha saída e meu retorno à praça, apenas 15 minutos depois.

Não houve surpresas importantes e não se deveria ter esperado por elas. Tudo estava acabado. A praça calada, deserta e em profundo silêncio. Espalhados no chão alguns livros, cadernos e “chinelas japonesas”. O corpo de Euclides estendido no meio da rua, cravejado de balas e coberto de sangue, observado por Edgar relojoeiro, Didi de Zeca Mesquita e Elísio Araújo. Na entrada da Prefeitura, com a face desfigurada, Antônio Oliveira Mendonça, é identificado por Edgar sob meus olhares. Euclides e Antônio percorreram a mesma distância em direções diferentes. Um para Prefeitura, outro para sua residência. Pela posição das lesões no corpo Antônio deve ter olhado para trás à procura do pai. Acompanho o deslocamento do corpo de Euclides até a sua casa. Por meio da farda fui identificado como estudante. Entretanto, reconhecido como de família udenista, recebo apenas ordens de deixar o ambiente e voltar para casa.

No dia seguinte, Itabaiana estava coberta por uma sombra de melancolia e dor. Milhares de pessoas, vindas de todo o Estado, postavam-se ao longo das ruas, acompanhando o cortejo fúnebre de pai e filho.

Aturdidos com a tragédia, os líderes udenistas choram as terríveis perdas. Foi o maior momento de comoção que Itabaiana viveu. Os filiados da UDN conscientes de não gozar da mesma popularidade de Euclides, iniciaram um culto à sua memória, transformando-o numa enorme fonte de inspiração política. Sua imagem foi talhada como fundador da moderna Itabaiana, criador da identidade de nosso povo, um homem poderoso, mas exposto às dificuldades de todos os seres humanos. Foi transformado na encarnação dos sonhos e das lutas, de todos os coronéis que viam nele o político a ser imitado.

Aracaju, 09 de abril de 2014

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]