Eu queria morar numa casa de quintal enorme, que tivesse uma mangueira rosa e uma espada, troncos grossos, altos, os galhos se derramando pelos lados, para, na safra, a manhã nascendo, ir até as duas com a vara na mão, lata nela fincada, a fim de retirar uma de cada, e, ali mesmo, sentar num banco para, de faca afiada, ir descascando-as, primeiro a espada, depois a rosa, saboreando, pedaço por pedaço, numa mastigação despida de qualquer ranço de pressa, para aproveitar aquele momento reservado exclusivamente aos deuses do Olimpo.

A realidade me vê num apartamento, como se fosse um passarinho, espaço curto e limitado, despojado do quintal que me frustra o cultivo da terra, alguma pimenteira, tomateiros e pimenteiros, a herança não longínqua transmitida de avoengos de rostos desconhecidos, que tiraram da terra o alimento diário, ainda latente em minhas veias, o prazer de ver a árvore ir subindo e ganhando corpo, de dizer, depois, como se fosse a maior façanha de todos os tempos, que foi plantada por mim, como, quando, passando pela frente da sede do INSS, em Itabaiana, aponto as palmeiras imperiais ali fincadas e, com uma alegria que mistura saudade e orgulho, proclamo que foram plantadas por meu pai.

No meu quintal haveria espaço para plantar cajueiros, dois ou três, bem separados, porque nada se compara também ao caju tirado do pé para consumo imediato, o cuidado para evitar a nódoa que o sumo provoca, reservando uma área para um pé de cajarana, que produzisse frutos bem graúdos, para sorvê-los ainda esverdeados ou já maduros, com o uso da faca afiada, como a do sapateiro que corta o couro e a borracha, o trabalho feliz, depois de barriga cheia, de tirar dos dentes as fibras fincadas. No centro do quintal, reservaria um lugar especial para plantar um umbuzeiro, fazendo promessas para ele crescer logo e se encher de umbus em todos os galhos, altos e baixos, acessíveis ou não as minhas mãos, umbus carnudos, na junção do seu verde com o das folhas, a dispensar o uso da faca, a deixar a cargo dos meus dentes a tarefa de devasta-los, aos poucos, só deixando intacto o caroço. E aí me vem à tona o moleque, dolosamente, chupando umbu na frente da banda. A gente, de instrumento em uso, tocando dobrados. De repente, a boca se enchia de cuspe, até não conseguir mais soprar nada. A banda encerra a tocada. O moleque, feliz, saía a se gabar de ter derrubado a banda, como, de fato, derrubou.

De todas as fruteiras do mundo, o umbuzeiro, quando cheio, é o que mais enseja na minha mente a ideia do paraíso. Nem a mangabeira, a deixar cair os frutos maduros, nem a mangueira enfeitada de manga, como se fosse pinheiro natalino cheio de presentes. Talvez porque nunca tenha visto um umbuzeiro assim carregado, a lembrança de não ter passado por perto de nenhum assim cheio e superlotado, umbus em tudo quanto é canto, a paisagem apenas do umbuzeiro se enchendo de folhas, que vi, no sertão de Nossa Senhora da Glória, quando por lá comecei minha carreira de juiz. Acho que, no fundo, além da mangabeira, o umbuzeiro é fruteira que se cultiva no céu. Se chegar por lá, vou saber, enfim. Podendo, mando notícias. (22.07.13)

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.   

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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