Maurício Cavalheiro 15 de março de 2018

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Jamil engoliu um calmante, banhou-se e acomodou-se na poltrona da sala procurando distrair-se com o jornal televisivo. Ansioso, consultava o relógio de minuto em minuto. Muitas vezes levantou-se para verificar se o seu terno italiano – comprado no Paraguai com todas as suas economias – estava impecável.
– Tininha, ô Tininha! Tô achando esse terno um pouco amarrotado… Dá pra você dar um jeitinho?
A mulher contava até dez para não estourar de cólera. Estava esgotada de tanto se dedicar àquele pedaço de pano. Entretanto, resistia; pois sabia que aquele seria o momento mais importante da vida do marido.
O relógio enfim atingiu às sete horas. Jamil saltou da poltrona e vestiu o terno. A esposa desmoronou esvaecida e feliz.
– Não quer mesmo vir comigo, querida? – convidava fiscalizando-se no espelho.
– Outra vez eu vou… outra vez…
– Será que estou bem assim?
– Está maravilhoso… Ma-ra-vi-lho-so.
Jamil deu-lhe um breve beijo, rejeitando o abraço – poderia amarrotar-lhe o indumento. Instalou-se no fusquinha 80 e rumou para a câmara municipal. “Falta pouco para trocar esse caco velho.” Pensava.
Estacionou o veículo a duas quadras. Envergonhava-se de sua condição financeira. Não tivera muitas oportunidades na vida. Talvez por ter cursado apenas até a segunda série do ensino básico. Só não era ignorante porque sabia escrever muito mal o seu nome. Quando pediam para fazer as leituras na igreja, desculpava-se dizendo que sem os óculos – que deixava propositadamente em casa – não conseguia enxergar aquelas letrinhas. Sabia ler sim; mas, custava a reunir sílabas. E, apesar de quase ignaro, conseguira se eleger por ser prestativo e querido por toda a comunidade.
– Seja bem vindo para a posse, nobre edil?
Ajustando a gravata, olhou com indiferença para o grupo onde um homem adiposo, com pouco mais de metro e meio trajava um terno verde, camisa amarela e gravata azul. Era o Zidorinho Bandeira, candidato oposicionista, reeleito com o maior número de votos, entre outros reeleitos.
– Se me permite corrigi-lo, nobre colega, meu nome não é Edil.
Puxando os óculos para a extremidade do nariz, ranzinzou:
– Meu nome é Jamil.
E sobre as gargalhadas da plêiade veterana, ascendeu às escadarias que davam acesso à câmara municipal.
Cada degrau superado agravava-lhe os tremores pelo corpo e a sudorese na fronte abstêmia de cabelos. Nem mesmo o calmante que ingerira antes de sair de casa, conseguia arrefecer-lhe os nervos.
No recinto as pessoas se comprimiam para assistirem a primeira sessão. Naquela cidade era tradição que os representantes de bairros comparecessem a todas as sessões para exigir que as promessas de palanque fossem cumpridas.
Aos poucos a edilidade acomodou-se nas poltronas italianas. Zidorinho Bandeira, assumindo a presidência, assomou o microfone e ordenou:
– Todos em pé para iniciarmos a nossa primeira sessão cantando o Hino Nacional.
Após o ato cívico e as formalidades da ocasião, o presidente determinou:
– Sejam todos bem vindos à nossa casa. A partir de agora, cada um dos nobres colegas deve colocar em pauta as reivindicações da população.
Jamil havia reunido na memória diversos pedidos. Aguardaria a sua vez para explaná-los.
O primeiro a manifestar-se foi Dito Bola, empresário renomado na cidade, proprietário de vários imóveis.
– Agradeço a confiança do povo em me reeleger. Darei continuidade ao meu trabalho. E gostaria de iniciar protestando contra o poder executivo que pretende elevar em 20% o IPTU. O povo não suporta mais aumento de imposto.
“Sobre o IPTU não posso mais falar” pensava Jamil, eliminando um item da relação em sua memória, enquanto a platéia aplaudia eufórica.
Outro vereador levantou-se e comentou:
– Solicito esclarecimentos sobre a pintura do mercado municipal. Inauguraram-no apenas com a pintura de duas paredes. Quando irão completar o trabalho?
Receando ficar sem argumento, Jamil levantava o braço com o indicador em destaque requerendo a palavra. Zidorinho Bandeira fazia vistas grossas até impacientar-se:
– Aguarde a sua vez, nobre edil. Agora o direito à palavra é de Jair Combosa.
– Temos que lutar contra o monopólio dessa empresa de ônibus que presta serviços em nossa cidade. Quero dizer: serviço não. Um desserviço, isso sim. Precisamos garantir a qualidade e pontualidade nas linhas – esbravejou o líder dos transportes alternativos.
Cada edil que se deslocava até a tribuna, antecipava as colocações de Jamil que começava a desesperar-se. Quando Tonho Mão-de-Gato concluiu sua elocução, Jamil se desesperou. Finalmente havia chegado a sua vez. Mas, o que iria dizer? Sentiu tontura quando Zidorinho Bandeira olhou para ele.
– Chegou a sua vez, nobre edil… A tribuna é toda sua.
Desconcertado afastou a poltrona para se levantar. Quase caiu. Ajustou a gravata que parecia querer asfixiá-lo. Enfiou as mãos no bolso procurando o lenço. Enxugou o suor da fronte e limpou as lentes dos óculos. Caminhou tremulamente para a tribuna. Ajustou o microfone. Pigarreou limpando a garganta. Direcionou os olhos para os espectadores. Sentiu um calafrio na barriga que antecedeu a fortes dores. Poderia ser uma reação adversa do calmante. Entre trejeitos de dor, exprimia um sorriso de segurança, pois havia encontrado refúgio naquelas cólicas. Quase de cócoras, agarrou o microfone e gritou:
– Por favor… alguém pode me dizer onde fica o banheiro?
Ao ver o dedo indicador de um funcionário da câmara que dizia: “É por ali”, saiu correndo para iniciar suas atividades edílicas.

Obs: O autor é membro da Academia Pindamonhagabense de Letras é autor de: Lágrimas de Amor – poesia; O sapinho jogador de futebol – infantil; O estuprador de velhinhas & outros casos – contos; Histórias de uma índia puri – infanto-juvenil; O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte, e Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda – cordéis.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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