VÓS SOIS O MISTÉRIO, SENHOR,
NÓS VOS CONTEMPLAMOS NO AMOR
Hoje em dia, fala-se muito em mística. Mas, o que é mística? E como entendê-la na cultura atual de pluralidade teológica e do diálogo inter-religioso? “[…] as experiências místicas das diferentes tradições religiosas continuam sendo experiências de comunhão com Deus e de conhecimento de Deus por experimentação”.[1] Na raiz de cada religião está a experiência do mistério. Os que experimentam o mistério são os místicos.
Os místicos dão nomes ao Mistério. É sua ousadia, pois o Mistério é inominável. Chamam-no de Deus, Atma, Tao, Yahweh, El, Pai… Não importa o nome. Será sempre uma etiqueta para o sem-nome.
Antes de tudo está a experiência do mistério, a experiência de Deus. Somente depois vem a fé. Esta não é, em primeiro lugar, a adesão a uma doutrina, por mais revelada e sobrenatural que se apresente. A fé só tem sentido e é verdadeira quando significa resposta à experiência de Deus, feita pessoal e comunitariamente. Fé é então expressão de um encontro com Deus que envolve a totalidade da existência, o sentimento, o coração, a inteligência, a vontade. Jacó deu um nome ao lugar onde encontrou Deus; chamou-o Fanuel, pois disse: “Vi Deus face a face” (Gn 32,31).
E qual é a característica da experiência mística no cristianismo? “[…] é a experiência de um Deus encarnado. Fora deste dado central e absolutamente necessário, não há cristianismo”.[2] Significa que jamais encontraremos a comunhão com Deus e o amor e o conhecimento de Deus fora da realidade, fora de nossos relacionamentos, fora das experiências, prazerosas e dolorosas, de nossa vida pessoal e social, fora de nossas lutas por uma sociedade de iguais, respeitosa da variedade de pessoas, povos e culturas. Mesmo tendo experiências de Deus comuns ou semelhantes com as de outras tradições, nossa referência principal, como cristãos, será sempre JESUS CRISTO: “com os olhos fixos em Jesus, autor e consumador de nossa fé” (Hb12,2). É por meio de Jesus que somos mergulhados na comunhão da Santíssima Trindade, no mistério de Deus, ao mesmo tempo íntimo e insondável, inefável, infinito.
E qual o lugar da liturgia nesta mística? É na assembleia litúrgica que nos encontramos, mística e comunitariamente, com o Cristo Ressuscitado que nos faz passar com ele da morte para a vida, da escravidão para a liberdade, do apego a nós mesmos para o transbordamento do amor. Ele nos faz juntas mergulhar no âmago da realidade, intuir o coração da vida, o mistério insondável, inexprimível, presença viva do Deus Amor entre as sombras e as luzes de nossas buscas e experiências. E nos envia em missão a serviço do Reino no mundo. Por isso, em toda a trajetória do povo de Deus da Antiga Aliança, a mística ou a espiritualidade está sempre ligada às assembleias, solenes ou cotidianas, que o povo faz, atendendo à convocação de seu Deus para encontrar-se com ele, ouvir sua Palavra e colocá-la em prática, comprometer-se com o seu projeto. O povo chora suas dores, implora ajuda, festeja as vitórias, pede perdão, celebra a Aliança e sai fortalecido na fé no Deus Libertador. Mas há momentos também nos quais as liturgias merecem as críticas dos profetas (cf Am 5, 21-27), por não estarem ligadas à realidade do povo, por não engajarem o povo nas lutas, por não reforçarem o projeto da Aliança de Deus.
As comunidades da Nova Aliança reúnem-se para fazer memória de Jesus (anamnese), invocando a ação do Espírito Santo sobre a comunidade (epiclese). A partir daí, profundamente unidos a Jesus, o Crucificado-Ressuscitado, vivendo e crescendo em sua intimidade, os cristãos se tornam testemunhas vivas do Cristo; anunciam e propagam a Boa Nova do Reino de Deus. Os escritos do Novo Testamento nos oferecem indicações preciosas sobre estas reuniões litúrgicas do povo de Deus, as quais eram como o coração de sua vida e missão.[3]
E hoje? Como fazer celebrações verdadeiras, autênticas, orantes, proféticas, ligadas à vida e à luta dos pobres, em continuidade com a tradição genuína do povo de Deus? Como fazer para que essas celebrações alimentem nossa espiritualidade, nossa mística, nossa ligação com o Deus da Aliança, o Deus dos pobres, para que alimentem o nosso seguimento de Jesus? Como redescobrir a liturgia como fonte de nossa espiritualidade cristã, de nossa mística? De fato, muitas vezes a espiritualidade e a liturgia caminham separadas em nossa vida. Isto tem uma explicação histórica: durante séculos, a liturgia ficou confinada nas mãos do clero, era celebrada em latim, com ritos estranhos à cultura dos povos que iam sendo “evangelizados”. O povo, impedido de participar da liturgia, foi criando outras formas para expressar seu amor a Deus e sua devoção, como: procissões, terço, via sacra, danças, folias, congadas… Ao longo dos tempos, foi surgindo uma série de “espiritualidades”, a maior parte delas sem ligação com a liturgia.
No início do século XX, o Movimento Litúrgico, Bíblico e Ecumênico foi abrindo espaços e colocando as bases para que, pouco a pouco, o povo de Deus fosse tomando consciência de sua missão de povo sacerdotal ao celebrar a memória de Jesus Cristo, cantar os louvores de Deus e interceder pelo mundo inteiro, na ardorosa expectativa da vinda do Reino de Deus entre nós. A abertura para as liturgias celebradas na língua do povo, na linguagem poética, musical e gestual própria de cada cultura, com o resgate de expressões da piedade popular, torna possível ao povo voltar a beber da liturgia como “primeira e necessária fonte do espírito verdadeiramente cristão” (SC14).
Para refletir
- Onde alimento minha mística ou espiritualidade?
- Até que ponto as celebrações litúrgicas, os textos bíblicos, os salmos, hinos, cantos alimentam a minha espiritualidade, me ajudam a fazer experiência de Deus?
- Deixo-me tocar pelo sagrado?
DEUS está presente,
Tudo em nós se cale
E se dobre interiormente à sua presença.
Místico Teersteegen
Mantra: O nosso olhar se dirige a Jesus, o nosso olhar se mantém no Senhor.
[1] BINGEMER, Maria Clara Luchetti. A mística cristã em reciprocidade e diálogo; a mística católica e o desafio inter-religioso. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do mistério; mística e religião. São Paulo, Paulinas, 2004. P.37.
[2] Idem, ibidem, p.68.
[3] A título de exemplo, seguem algumas passagens: Lc 24,13-35; At 2,42-47; At 4,23-31; At 13,1-3; At 20,7-12; Rm 3,6-11; 1Cor 10,16-17; 1Cor 11,17-24; 1Cor 12,13; 1Cor 14,26ss; Hb 10,19-25; Ap 5; Ap 7,9-17; Ap 11,15-18; Ap 19.
Obs: O texto acima foi uma proposta de reflexão realizado em um retiro bíblico-litúrgico para Irmãs beneditinas missionárias.
Imagem enviada pela autora.