(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio)
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O Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal. O presidente da República nomeou interventor o general de Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, sediado na Cidade do Rio. O oficial assumirá o comando das forças de segurança e da ordem no Estado, a saber: as Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros. Seus comandados do Comando Militar do Leste serão mobilizados para interferir nos problemas de segurança, respondendo apenas ao Presidente da República.
Ninguém nega que o estado precisa encontrar um caminho para resolver a situação de insegurança em que se encontra. Com um governo inoperante, uma prefeitura da cidade do Rio ausente e o poder paralelo do tráfico armado até os dentes e cada vez mais organizado, as mortes se multiplicam e os cidadãos não conseguem sequer exercer seu direito de ir e vir com um mínimo de tranquilidade.
Porém é fato igualmente inegável que intervenção militar desencadeia em nossa memória recente recordações – e, portanto, reações – muito mais negativas que positivas. O Brasil conheceu por décadas o gosto amargo da intervenção militar feita ditadura, com um saldo irreparável de violência, medo, torturas e morte. Continuam sendo encontradas ossadas de uma geração ferida de morte por aqueles que saíram dos quartéis para garantir a ordem que acreditavam perturbada e tardaram muito em retornar a eles.
Por isso, intervenção é palavra ambígua e movediça. Com origem no vocábulo latino interventĭo, intervenção é formada pelos vocábulos “inter” e “venire”, e indica a ação ou o efeito de intervir. E isso faz referência direta a diversas questões onde identidade e alteridade se cruzam e se esbarram mutuamente. Abrange desde o ato cirúrgico que, em medicina, destina-se a solucionar um problema de saúde com a ciência exercida na prática, até o ato de dirigir os assuntos que correspondem a outro, seja este pessoa física ou entidade coletiva.
Uma intervenção militar supõe o fracasso da sociedade civil em resolver seus próprios problemas, sua incapacidade de controlar uma situação que está sob sua alçada. Outra esfera da sociedade vem então e intervém para solucionar aquilo que a sociedade não consegue administrar. Assim foi nos tristes idos de março de 1964. Acreditando o Brasil em perigo diante do comunismo internacional, o Exército interveio e assumiu o controle do país. Quando se trata de relações internacionais, a intervenção diz respeito a dirigir, de forma temporária, os assuntos internos de outra nação.
Na recente história da humanidade, podemos contar várias destas intervenções, protagonizadas por distintas potências estrangeiras, como a Alemanha nazista e a Rússia comunista. Ambas fracassaram em seus intentos e a médio ou longo prazo foram derrotadas e substituídas por regimes democráticos. Ainda que essas democracias não sejam perfeitas, os povos que se encontravam sob o tacão intervencionista preferem as dificuldades que têm hoje do que se sentir invadidos em casa e ver sua soberania atacada.
Os Estados Unidos – muitas vezes com o auxílio de outras potências mundiais – têm se especializado nessas intervenções, que se revelam tanto militares como políticas. Na América Latina, contamos mais de um caso, como o Panamá do General Noriega, El Salvador, a Nicarágua entre outros. Hoje, o Oriente Médio – Iraque, Afeganistão, etc. – é o palco principal dessas intervenções que pretendem forçar uma mudança de rumo político com o pretexto da segurança mundial e do bem-estar do povo local.
E o que temos visto como consequência é um constante recrudescimento da violência e dos fanatismos os mais diversos como resposta de povos que não desejam ser tutelados por outros povos e reagem negativamente a este tipo de intervenções que ameaçam sua autonomia.
É o profundo desejo da sofrida população carioca que a intervenção federal agora decretada não acrescente mais sangue, mais luto e mais dor aos que já povoam diariamente seu cotidiano. Que seja uma medida destinada a restabelecer a segurança no território do Rio de Janeiro apenas por um tempo até que a situação melhore e atinja níveis um pouco menos traumáticos. Para tal, os métodos não podem ser mais violentos do que a violência já presente na situação estabelecida.
Violência gera violência. Dinâmicas de paz não poderão ser aplicadas se o ponto de partida for a intervenção truculenta e agressiva. Isso só gerará revolta e mais agressividade, sobretudo naqueles que diariamente sofrem as consequências da injustiça. A violência é filha da injustiça. Se a intervenção pode ser uma necessidade para dirimir uma situação que chegou a um ponto de estrangulamento, pode ser um profundo fator de risco que tende a piorar esta situação em lugar de minorá-la ou resolvê-la.
Que não se deixe de, a par das ações que a intervenção federal realizará na cidade e no estado, buscar construir soluções a longo prazo. E isso implica escolhas políticas que tragam governantes mais capacitados e desejosos de investir naquilo que realmente importa: educação, saúde e superação das injustiças. Só aí estará o caminho para uma paz dinâmica e realista para o Rio, que já não suporta mais contar cadáveres e deseja voltar a viver com dignidade.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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