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O teatro é um recurso privilegiado de formação humana. Até porque, graças à representação no palco, pode ser entendido por quem não é alfabetizado. Ele retrata a nossa natureza lúdica, essa multiplicidade de seres que nos povoam. Sou agora o palestrante sisudo que finge saber mais do que realmente conhece. Porém, reside em mim uma multidão: o intelectual e o crente, o cartesiano e o insensato, o adulto e a criança. No palco, revisto-me de um outro que não sou eu e, no entanto, eu é que lhe dou vida, dicção, movimento e emoção.

O teatro é um ritual mágico, transfigurador do real, espelho que nos devolve a nós mesmos. Sou Édipo e Creonte, também Jocasta, Electra e Medeia.

Teatro vem do grego theátron – lugar onde se contempla. E contemplação não é sinônimo de observação. É uma experiência mistérica, endógena, em que me deixo invadir pelo objeto contemplado. O contemplativo é o místico, apaixonadamente habitado pela divindade. No teatro, são os personagens que despertam seus homônimos escondidos em minha subjetividade. Neles contemplo a mim mesmo. Meu lado trágico e meu lado cômico. O que trago de divino e perverso.

 Nossos arquétipos estão delineados nas grandes obras teatrais. Não foi em vão que Freud recorreu a elas para estruturar sua etiologia psíquica. No teatro importa o ser, o que não é tão acentuado no cinema e na telenovela. Por isso, só no palco pode haver monólogo, reflexo desse nosso contínuo monólogo interior.

Como exemplo de diversidade cultural propiciada pela dramaturgia, atenho-me à Grécia do século V, aos fundadores do teatro clássico: Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes.

De Ésquilo nos restaram As suplicantesPrometeu acorrentadoOs persas. Foi quem inventou a tragédia. Arcaico e religioso, nos forneceu a primeira luz do que seja a democracia. Encenada por volta de 468 a.C., As suplicantes mostra a população de Argos – ou seja, a “demo” – concedendo asilo (“kratos”, o poder de decidir) às Danaides, que haviam assassinado seus maridos na noite de núpcias. Ali, pela primeira vez, os dois termos aparecem unidos. Já no fim do século V a.C. o substantivo definia o regime ateniense.

Sófocles acreditava no poder dos deuses e na predestinação. Seu principal personagem é o destino. Destaca-se com o maior trágico da antiguidade grega por seu Édipo rei, mais tarde completado pela peça Édipo em Colona. Vamos encontrá-lo na psicanálise, mas não há literatura criada do nada. Os primórdios de Édipo estão no Canto IV da Ilíada e no IX da Odisséia, e na peça Os sete contra Tebas, de Ésquilo.

Por força do destino traçado pelos deuses, ele mata o pai e casa-se com a mãe. Mas é muito mais do que um mero triângulo conflitivo hoje utilizado na telenovela para atrair atenção do público. Édipo abrange todos os campos da experiência humana: a relação do homem com o divino (o oráculo); o poder (a realeza) e a família. Ou seja, piedade, autonomia e afetividade.

Antígona é a mulher que prefere dar ouvidos aos deuses que aos tiranos. Eurípides é o autor de ElectraMedéiaSísifoAs troianasAs bancantes, entre outras peças. Ao contrário de Sófocles, ele introduz a dúvida, convida-nos à crítica diante dos deuses, das autoridades, das supostas verdades geradas pela imposição. Feminista avant la lettre, realça as mulheres como seres fortes, dotados de coragem e ternura, ódio e paixão, ao contrário dos homens, debéis e covardes. Suas peças primam pelo retrato psicológico dos personagens e exaltam o amor e suas várias manifestações: apaixonado, conjugal, materno. Ifigênia abre mão da própria vida para favorecer a expedição à Tróia; Medeia vive intemperadamente suas paixões amorosas.

Aristófanes polemiza, introduz a sátira social, faz da arte uma arma de crítica política. Em Os cavaleiros desmoraliza os demagogos. Em As rãs mostra um concurso entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, os três grandes trágicos. Satiriza Eurípides e exalta Ésquilo. Em As nuvens, critica os metafísicos e os sofistas, sem poupar seu amigo Sócrates. Ridiculariza a justiça ateniense em As vespas e, em Lisístrata, a greve sexual das mulheres força atenienses e espartanos a fazerem um acordo de paz.

Obs: Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.

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