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Quem sabe não está na hora de fazer as pazes com Machado de Assis? Que tal ‘A Cartomante’?
Para alguns trabalhadores e muitos alunos, estão começando as férias. Pausas são fundamentais para o corpo e para o cérebro. De todas as formas de fruição da vida, a leitura é um privilégio que cruza descanso com produtividade, lazer e ideias novas. Ler redefine nossa vida e nossa consciência.
Queria fazer sugestões de leituras. É uma lista subjetiva, com ênfase no lúdico, na descoberta ou na visita a clássicos. Comece pela experiência dos contos e sua vivência única: você inicia e termina a narrativa de um único fôlego. São peças menores em tamanho e imensas em significados. Quer experimentar uma coletânea abrangente? Encare Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, selecionados por Ítalo Moriconi (Objetiva). Prefere focar em uma autora genial? Saboreie a coleção de Clarice Lispector (Todos os Contos, Rocco). Sempre adorei os Doze Contos Peregrinos, de Gabriel García Márquez (Record). Na obra do colombiano, cada fato no limite do improvável gera uma narrativa maravilhosa: um dedo picado em uma rosa, uma carona em um ônibus, uma viagem aos meandros do Vaticano…
Quem sabe não está na hora de fazer as pazes com Machado de Assis? Que tal A Cartomante, Teoria do Medalhão, A Igreja do Diabo, O Enfermeiro ou O Alienista (um conto quase romance)? Nós lutávamos com o autor na escola, mas éramos notavelmente mais ingênuos do que hoje.
Sempre slow reading, leitura tranquila e apreciando cada frase. Não há um relatório, provas ou prazos. Só o texto, na rede, no sofá, na cama e o autor conversando conosco.
Bons romances que descrevam novas perspectivas? A Elegância do Ouriço (Cia. das Letras), de Muriel Barbery, por exemplo. Como aquela mulher da portaria conseguia levar uma vida tão fascinante? E que final surpreendente! Outro texto que faz pensar e toca nos medos contemporâneos: Submissão (Alfaguara, 2015), de Michel Houellebecq. O escritor tem maus bofes, porém a narrativa é interessante. Qual será o destino das lojas finas de lingerie em Paris quando o país eleger um partido islâmico? A resposta de Houellebecq é original.
Quer um autor para uma imersão de muitos livros e a descoberta de uma maneira de ver o mundo muito distante da usual? Valter Hugo Mãe vai lhe conduzir a colinas totalmente diferentes. Encare uns três nas férias: A Máquina de Fazer Espanhóis, A Desumanização e Homens Imprudentemente Poéticos (Biblioteca Azul da Globo Livros).
Aprecia o campo da História? A Segunda Guerra é inesgotável. A Contexto lançou este ano uma obra fundamental sobre a eugenia nazista: As Crianças Esquecidas de Hitler, de Tim Tate e Ingrid Von Oelhafen. Simon Montefiore escreve tão bem sobre os Románov (Cia. das Letras) quanto sobre o Jovem Stálin (Cia. das Letras). Considerando a próxima copa do mundo é uma boa hora para aprender sobre aquele mundo.
A autobiografia de Lázaro Ramos, Na Minha Pele (Objetiva), é obrigatória para que se pense o racismo e a meritocracia. Comecei há poucos dias e estou amando a nova narrativa de Jô Soares, desta feita sobre si mesmo: O Livro de Jô – Uma Autobiografia Desautorizada (vol. 1, em conjunto com Matinas Suzuki, pela Cia. das Letras). Lima Barreto – Triste Visionário (Cia. das Letras), de Lilia M. Schwarcz, possibilita aprender sobre um gênio da literatura e, de quebra, refaz todo o fim do Império e início da República. A cada capítulo, Lilia reconstrói o mundo do autor do Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Férias podem ser um momento bom para entrar no laboratório da língua: a poesia. Saiu a nova edição de Cecília Meireles em dois bonitos volumes (Global). Poesia é vocação raríssima. Todos podem escrever versos, sempre haverá poucos poetas.
Gosta de arte? O livro e o documentário de Simon Schama (O Poder da Arte – Cia. das Letras) têm méritos extraordinários. Cada pintor recebeu um tratamento muito original.
Quer trocar de espaço geográfico? Descubra a literatura da era Meiji no Japão: Eu Sou Um Gato (Estação Liberdade), de Natsume Soseki. Como não seríamos o Brasil sem a África, tente a nova literatura da Nigéria, com os textos de Chimamanda Ngozi Adichie. Há obras com teor feminista e outras ficcionais interessantes.
Quer voltar a um bom texto ficcional de muitos anos? Encare As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley (Ed. Planeta), uma versão renovada do mito do rei Artur.
Claro que você pode estar com energia específica para, enfim, reler ou descobrir um grande clássico. Ainda não leu Crime e Castigo? Falha grave. Que tal uma viagem marítima com Moby Dick? Nunca encarou Cem Anos de Solidão ou Conversa no Catedral? Chegou a hora.
Por fim, a parte prática. Se vai viajar, leve volume único que possa folhear com prazer. Se prefere levar vários, a solução é o formato eletrônico. Já levei obras que, lidas, eram abandonadas no metrô ou em praças com bilhetinho de doação.
Enfim, para quem pode, chegou a hora de puxar o freio. Como a música, o valor da vida está na alternância de pausas e notas, ritmos e andamentos. Embarco em viagem de estudo/férias/palestras para as Ilhas Britânicas e Portugal. Sou autor e amo escrever, mas o que realmente me entusiasma é ler. Como Borges, suponho que o Paraíso seja algo próximo de uma biblioteca. Bom domingo para todos os que leem.
Publicado no O Estado de S.Paulo | 17 Dezembro 2017
Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP. É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria inúmeros livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ , “Conversas com um jovem professor” e outros. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.