(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio)
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Falavam sempre da síndrome do ninho vazio e me parecia tão distante.  Até o dia em que minha filha mais velha me anunciou que havia aceitado um trabalho em São Paulo e se mudaria  no mês seguinte.  Era um Dia das Mães e almoçávamos em família.  Foi duro terminar o almoço sem chorar.  Quando fiquei sozinha, à noite, chorava perplexa.  Para mim, ela era apenas uma menina.  E neste dia me dei conta de que era uma mulher de 25 anos.

A essa partida sucederam-se outras, com excessiva rapidez.  E um dia meu marido e eu nos olhamos e estávamos sozinhos. A casa havia ficado enorme e silenciosa.  A ordem reinava por toda parte. Meu Deus, parecia ontem quando nossa cama era um campo de futebol e de jogo de almofadas, com os três rindo e impedindo-nos de dormir.  Agora podíamos dormir cedo e acordar tarde.  Não mais de madrugada para levar algum no colégio ou para evitar que outro perdesse a hora e o ônibus. Mas a saudade era imensa e cavava um vazio difícil de ser preenchido.

O ninho estava vazio.  E assim ficou por muito tempo.  Ocupamos o espaço com livros e amigos que às vezes vinham se hospedar.  Nossos filhos nos visitavam e criticavam tudo ou quase tudo: como ainda não mudaram essa decoração?  Mas outra vez esse mesmo prato? Etc. etc. Em casa deles era diferente.  Nós víamos quando os visitávamos.

Depois foram se casando e formando as próprias famílias.  E chegaram os netos.  Creio que nunca desejei tanto algo na vida como ter netos.  Ansiava por bebês que pudéssemos segurar no colo, alimentar, beijar, dar banho. Foram vindo um, dois, três, quatro, cinco. A forma de criar filhos hoje é bem diferente da nossa época.  Há horários e regras para tudo e ai de quem cometer a menor infração.

Várias vezes fui admoestada por entrar de sapatos no quarto de um dos netos, pegá-lo no colo fora de hora.  Mas eles e elas também foram crescendo.  E foi nascendo uma linda cumplicidade entre avós e netos.  Não há nada mais próximo de um idoso do que uma criança. A inocência de um entra em total harmonia com a segunda inocência do outro.  A criatividade livre para desafiar o tempo e a imaginação flui, bela e empolgante.   Os avós passaram a ser aquele terreno da absoluta liberdade onde todos os desejos são realizados.

Quero chocolate.  Mamãe não deixa, mas vovó sim.  Quero ver TV e dormir tarde.  Claro, meu amor.  E a vovó começou a se interessar por desenhos animados, personagens que não existiam em sua infância, mas que povoam o imaginário infantil agora.  Passou a aprender a mexer em iphones, ipads e notebooks com a assessoria dos netos que se espantam muito pelo fato de ela não saber fazer operações que para eles são tão simples no mundo da eletrônica e da cibernética.

Quando eles chegam – ou melhor, quando os pais deixam que venham à nossa casa – tudo revira de pernas para o ar.  A casa silenciosa, habitada por um casal idoso, se enche de barulho, as almofadas rolam pelo chão.  De madrugada ouvem-se passinhos e um ou outro ou todos vêm nos visitar na cama.  E reedita-se o jogo de almofadas da infância dos filhos.

No dia seguinte, as olheiras sulcam os olhos – deles e nossos – e há que ouvir a bronca da mãe e do pai, que haviam dito para não dormirem tarde etc.  E os avós levam bronca também, sorrindo e piscando para os netos em silenciosa e consciente parceria. As roupas estão jogadas por toda parte e os sapatos atirados pelos quatro cantos.  Há que recolhê-los e arrumá-los.  E que imensa ternura enche o coração ao fazê-lo e ver em cada sapato o pezinho que o calça. Pezinhos que terminam o dia imundos, devendo urgentemente ser limpos num banho longo e que espalha água pelo banheiro inteiro.

 Depois eles se vão.  E o ninho fica novamente vazio e em absoluta desordem.  Mas por toda parte se respira o amor que não se pode controlar e manter sob chave. A passagem dos pequenos furacões trouxe novamente a vida, com suas surpresas e seus sustos.  Com seu movimento, enfim. É hora de relembrar as conversas, de comentá-las em conjunto para amansar as saudades.

Até a próxima visita, o próximo encontro, a vida vai seguir seu ritmo.  Mas não mais monótona ou vazia.  O dom da família, das crianças que hoje ocupam o espaço amoroso que um dia os filhos pequenos ocuparam soprará ar puro nos pulmões dos avós. Dá gosto sentir que a passagem dos pequenos pela vida às vezes monótona dos grandes é como o sopro do Espírito, que não se sabe de onde vem, nem para onde vai.  Só se sabe que é o que permite viver e respirar fazendo a vida merecer o nome que tem: vida.

Do Espírito que sopra onde quer e subverte a ordem jorram muitos dons, mas sobretudo um que sela os encontros entre avós e netos pequenos: a alegria.  Rir, rir e rir das coisas que dizem e fazem; ouvi-los rir das coisas que os avós dizem; gargalhar juntos sem censura e sem medo.

Nos tempos tão sombrios que hoje vivemos, ter a bênção da proximidade e convivência com as crianças é realmente um dom sem tamanho, uma graça infinita.  Eis porque Jesus amava tanto os pequeninos e ficava aborrecido quando queriam impedi-lo de estar com eles.  Delas sem dúvida é o Reino, com tudo que tem de gratuito, de generoso, de belo e de bom. Elas falam de futuro e de esperança, e fazem crescer o desejo de construir um mundo um pouco melhor, um pouco mais parecido com o sonho de Jesus e de seu Pai.

Obs: A teóloga é autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.

Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected] 

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