Infância e Adolescência – Durante maior parte da infância viveu na Matapoã, povoado pouco habitado, onde nasceu em 23 de Outubro de 1926. Na busca de uma vida segura e melhor, a família mudou-se para uma pequena propriedade rural no Campo Grande nos arredores de Itabaiana. Felismino, seu pai, após aperfeiçoar conhecimentos e técnicas sobre o trabalho com pólvora, ocupa situação especial quanto a seu ramo de atividade, conseguindo amealhar reservas financeiras suficientes para construir a casa de morar e dois telheiros parcialmente abertos para fabricar, de forma artesanal, fogos para pagamento de promessas e festas religiosas.

Os filhos aprenderam a viver de acordo com as normas rígidas da mãe, tendo horário para dormir, despertar, comer, tomar banho, brincar com crianças escolhidas na vizinhança e ajudar nas tarefas da casa. Felismino, depois de breve reflexão sobre as circunstâncias em que vivia a família, sentiu necessidade de moldar o caminho do futuro e ampliar, a longo prazo, as perspectivas de melhor qualidade de vida para o clã. Alguns meses depois de esmiuçar na mente várias ideias, adquiriu uma casa na Praça da Santa Cruz onde passou a morar. Desejava que os filhos fossem mais do que fogueteiros, pedreiros e sapateiros, e os matriculou no Grupo Escolar Guilhermino Bezerra, primeiro estabelecimento público de ensino da comunidade. Iracema era uma adolescente com ar juvenil, boa aparência e modos encantadores, sorridente, espirituosa, reservada e sempre atenta. Excluía de suas conversas dor, raiva, remorsos, culpa e vivia feliz. Nas primeiras aulas, demonstrou encontrar-se em situação vantajosa, em relação aos outros alunos, por ter recebido do pai, seu primeiro mestre, escassos conhecimentos de soletração, caligrafia e aritmética. Aluna aplicada, tirava proveito do máximo que a escola podia oferecer-lhe e transpirava alegria a cada informação assimilada. Obtendo bons resultados nas avaliações, deixava excelente impressão entre os colegas e na professora Zefinha de Sotero.

Durante uma festa religiosa, nas mediações da Igreja de Santo Antônio e Almas, Iracema, faceira e com discreta pintura no rosto, conheceu Zé de Gonçalo e foi completamente tomada pelo seu charme e comportamento atencioso. Tinha dificuldades em fazer amigos, entretanto, a amizade entre os dois floresce rapidamente e logo se torna um romance, por pouco tempo platônico. Inexperiente, fora tomada por sentimento fiel de afeição, galanteios do rapaz e depois de alguns olhares e raros afagos, nasce uma paixão que não para de crescer. Sentia desesperadamente necessidade de amar e sentir-se amada, no entanto, escondia da família a inclinação afetuosa do amigo e mantinha em segredo as intimidades dos encontros a sós. Os pais acreditavam que a filha não poderia fazer nada errado, mas, ela com a justificativa de ir ao curso de corte e costura disfarçava os momentos harmoniosos que ocorriam entre os dois.

Numa manhã de domingo, logo ao despertar sentiu enjoos, incialmente esporádicos e logo depois persistentes, algumas vezes acompanhados de vômitos amargos. O cheiro de alimentos fritos lhe causava mal, o estômago queimava e os seios doíam. Nas últimas semanas sentira dificuldades no aprendizado e além de preguiçosa andava indisposta. Maricota percebeu que havia algo que não estava certo na filha. Indagada pela mãe, lembrou, em silêncio,    de que já havia decorrido oito semanas da última menstruação. Vestiu a calcinha da irmã recém- menstruada, “passou a régua”, e fechou a conta com a mãe. Alguns dias depois descobre que de fato está grávida. Sentiu-se temerosa e caminhava de um lado para outro, apreensiva com a situação. Vivia a tarefa mais difícil de sua vida e precisava de coragem para enfrentar profundo desgosto que ardia no juízo. Julgava-se uma pessoa normal, capaz de amar, mas, não tinha idade para um relacionamento amoroso sem limites. Havia perdido o domínio sobre si mesma e o controle de seus impulsos. Estava grávida e não sabia como revelar aos pais, uma emoção dolorosa e situação que evocava culpa, vergonha e ressentimentos.

Gravidez e Casamento – Nada poderia ser comparada à dor que sentia pela desobediência. Queria assumir a responsabilidade dos seus atos, mas, temia enfrentar as reações da mãe. Só em pensar sentia frio, a pele tornava-se pálida e úmida, os pelos sofriam horripilações e o estômago dava nó. Não podia esconder a situação por mais tempo. Muito ansiosa e indecisa sobre o que fazer, já não possuía força para dominar as manifestações emocionais que afloravam da alma, nem equilíbrio para manter a expressão de serenidade que sempre abrigou. Naquele momento sentia-se condenada à infelicidade. Desesperada, entrou apressadamente no quarto, sem ao menos bater na porta, onde conversavam seu pai e seus dois irmãos mais velhos. Com semblante de dor e desagrado deixou todos assustados e em silêncio. Parecia em fuga de aparição imaginária de coisas sobrenaturais. Substituiu as palavras por choro partido por gemidos e soluços e, com a fala tremida e arrastada aproximou-se do pai e de pronto comunicou a gravidez. A confissão trouxe-lhe alívio ao corpo e a alma.

A sinceridade e a doçura de Iracema desarmaram as objeções do pai e dos irmãos. Felismino possuía habilidade ímpar, pensamento rápido e muita confiança em seu modo de agir e mesmo apanhado com as calças nas mãos, logo se refez do susto e abraçou carinhosamente a filha. Tomou sua defesa para protegê-la de olhares e comentários maldosos e recomendou-lhe permanecer recolhida em isolamento social até a solução da grave ofensa. Reuniu-se com Maricota e os filhos e com tom de voz mais alto do que fazia sempre, limitou a ação da família. Utilizou de sua posição hierárquica dentro de casa, exigindo que nenhuma punição deveria ser aplicada, descartando a expulsão da filha do convívio familiar, uma prática tradicional na cidade. Por algum tempo, ficaram sentados, mudos e surdos, olhando uns para os outros, todos sofrendo a mesma tortura psíquica. Maricota com ar de vingança atirou a primeira pedra no esposo: “você esta sendo punido com justiça. Apoderar-se de uma adolescente virgem antes da emissão do alvará de posse pelo padre ou pelo juiz, constitui agressão e humilhação aos princípios cristãos.” Felismino aprendeu a lidar com os problemas no momento que eles surgiam, para não tornar mais difícil e demorada a resolução plena. A violação das regras roía-lhe a alma. A filha fora ofendida e a família desonrada. Todas ideias lhe ocorriam. Saiu apressado e depois de alguns instantes batia palmas na casa do genro para chamar quem estava dentro. Não podia recusar ou escolher, a opção era o casamento e com poucas palavras decidiram como tudo devia ser feito.

Demorou algumas semanas, mas, no final de uma tarde de segunda-feira, antes do por do sol, com a Igreja à meia-luz pelo dia nublado, o casamento foi realizado. Naquela época era uma solenidade de união entre pessoas de sexos diferentes. A cerimônia foi muito simples e marcada pelo acanhamento e timidez da noiva e por fisionomias de desprezo de alguns dos presentes. A noiva vestia com simplicidade uma roupa decente bem ajustada ao corpo, contudo, não usava véu nem grinalda. Foi um casamento meia-sola, mesmo assim sobreviveu por seis anos e, dessa união temporária, nasceram quatro meninos e uma menina que faleceu com três meses.

No início, minha mãe levava uma vida aparentemente feliz e glamorosa para os padrões da cidade e logo tornou-se madrinha de umas vinte crianças. A desgraça desabou sobre a casa pouco tempo depois de cumprir o resguardo da última gravidez. O comércio piorava, dia após dia, os negócios e investimentos financeiros nada rendiam e as vitrines da sapataria continham apenas resto de mercadoria que não encontrava comprador. Meu pai, esperto e ambicioso, por meio de empréstimos contraídos sem intenção de pagar, ajuda do sogro e calote nos fornecedores, manteve a loja aberta até quando foi possível. No momento em que a situação tornou-se insustentável, na calada da madrugada partiu de Itabaiana para lugar desconhecido, deixando família, negócios e dívidas. Prometeu à esposa que nunca quebraria o juramento do matrimônio e logo estaria de volta, porque sua dívida maior era com ela e com a criação e educação dos filhos. Derramou lágrimas que não vinham do coração e com aparência triste foi embora. O que sentimos num determinado instante tem menos valor do que aquilo que sentimos continuadamente por longo tempo. Minha mãe não pôde evitar um grande amor nem apagar intensa paixão e esperou, em vão, meio século, cada dia como se fosse o primeiro, sozinha.

Separação e Criação dos Filhos – Minha mãe casou por amor e paixão tão irracional que não lhe permitia um julgamento suficientemente equilibrado a cerca do marido, incapaz de demostrar sensibilidade ou preocupação com o estado emocional da esposa. É provável que exista uma correlação entre felicidade e estabilidade conjugal. Separada, sem pensão alimentícia para os filhos, começou a enfrentar severas restrições. As necessidades traziam tensões psíquicas e físicas intensas e a sobrevivência passou a ser questão de importância bem maior do que qualquer prazer. Indecisa sobre o que fazer com o “resto da vida”, decide trabalhar e assumiu compromisso consigo mesma de cuidar da casa e dos filhos até o retorno do marido. Certa madrugada levantei da cama com o barulho da porta da rua abrindo e pouco depois fechando. Perguntei a minha mãe sobre o que acontecia? “Acordei aflita ouvindo pisadas na calçada e batidas na porta. Pensei que seu pai estivesse de volta, mas, a praça estava fria, em silêncio e vazia. Por mais que eu esteja feliz com vocês, nunca pude esquecê-lo por um dia inteiro.” O diploma de corte e costura, associado as contribuições do pai e dos irmãos, reduziam o peso e a aflição da pobreza dentro e fora da casa e depois de alguns anos bordando e costurando foi nomeada funcionária pública e lotada no Grupo Escolar Guilhermino Bezerra. Sempre com disposição constante, encontra no emprego as condições essenciais à sua realização: trabalho, salário, amizade das professoras e carinho dos estudantes.

Mãe superprotetora, mantinha os filhos com rédeas curtas e sem dispor de tempo suficiente para lapidar o nosso comportamento nos limites de seus princípios, assumiu uma personalidade excessivamente dominadora e punitiva. Lembro-me de que, numa tarde de sábado, pulei a cerca de pau a pique do quintal, para tirar goiabas na casa de Zinha do Sabão e fui surpreendido por minha mãe. Ela sabia lidar com os filhos do seu jeito e não aceitava deslizes. Fui surrado como nunca havia sido antes. Seus olhos arregalados traduziam a cólera do coração. Senti tudo nublado e distorcido, achava que fosse rachar ou quebrar, e esforçava-me para continuar de pé. Sentindo-me ruim não conseguia aguentar mais tortura e meus joelhos dobraram. O espancamento foi interrompido, no entanto, permaneci deitado na cama com o corpo e alma machucados, durante dois dias. Quando pude caminhar e passei pelo quarto de minha mãe, ela deixou escapar fragmentos suaves de choro e de seus olhos caiam algumas lágrimas. Aproximei-me e disse-lhe ter sido merecedor da punição.  Lamentei por minha fragilidade e prometi dar-lhe todas as coisas que me ensinara, e acrescentei: “não estou tão magoado assim. Minha dor, por ser diferente da sua, já passou e preciso de seu perdão”. Ela sentia-se muito mais ferida do que deixava transparecer até para ela mesma, abraçou-me e choramos juntos. Foi meu último sapeca aiar.

Educou-nos na fé católica e, quando não tinha mais nada a fazer, minha mãe, depois do jantar, sentava numa cadeira de balanço na porta da rua a nos embalar com histórias de Trancoso, iniciadas quase sempre com: “foi assim que ouvi dizer” ou, “era uma vez” e encerrada com “entrou pela perna do pinto e saiu pela perna do pato, o rei mandou dizer pra “Zefa Béu” contar quatro”. Eram narrações breves de coisas, em sua maioria, imaginárias. Nos enredos o bem sempre vencia o mal, o amor o ódio, o pobre o rico, o fraco o forte e o doutor recebia lição de quem não sabia nem ler nem escrever. Ao final da última história, rezávamos Pai Nosso, Ave Maria e Santa Maria. Fazíamos o Sinal da Santa Cruz e cada menino retornava à casa dos pais para dormir.

Doença e Morte – O tempo distribui declínio gradual ao organismo, mas, nem todo o corpo deteriora na mesma proporção nem ao mesmo tempo, sendo a história dos ascendentes o melhor indicador dos males e da vida longa que acompanha os descendentes. A doença e a morte de minha mãe ocorreram de forma rápida. Poucos anos após sua aposentadoria, passou a despertar com dor de cabeça, outras vezes com sensação de que as coisas giravam e a vista obscurecia. A tomografia mostrou que havia um tumor inoperável no cérebro. Logo, sua fala tornou-se entrecortada, apareceram engasgos, dificuldades para trocar de roupas, escovar os dentes, pentear os cabelos, levantar da cama, ficar de pé e caminhar. Em pouco tempo tornou-se totalmente dependente, restrita ao leito e não podia ser deixada sozinha. Recebeu apoio, carinho e os cuidados pessoais que necessitava da família e de forma mais intensa, contínua e incansável de Ana Lívia. Depois de algumas semanas foi internada com dificuldade para respirar. Sem esperança de recuperação a sua morte era iminente e já inevitável. À medida em que o tempo passava, o nível elevado de morfina aliviava a dor mas fazia minha mãe dormir em sono profundo. Na última tarde de sua vida, eu estava sentado ao seu lado, na cabeceira da cama, segurando sua mão e observando o aparelho que media os batimentos cardíacos e a respiração. Olhava para ela e sentia quanto a amava e quanto orgulho tinha por ela. A cada instante seu coração tornava-se mais lento, até que por fim parou. Morreram, com tanta dignidade quanto possível: Iracema de Felismino, Iracema do Grupo Escolar e Iracema Andrade. Iracema, minha mãe, continua viva dentro de mim.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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