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“Quando meu filho nascer, eu terei que tomar vergonha na cara e mudar o rumo da minha vida. Abandonarei a vida criminosa, não serei mais infiel, não darei mais golpes financeiros nos meus credores, começarei a dirigir responsavelmente, não brigarei na rua, vou ser mais tolerante com meus familiares, protestarei incansavelmente por um país melhor onde meu herdeiro será o mais novo morador”.

Muitas dessas promessas “éticas” permanecem no discurso e não se realizam na prática, mas mesmo as que são cumpridas de uma forma velada, partem do pressuposto de que a Terra toda gira em torno do meu umbigo (e agora do umbigo do meu filho também), com o único objetivo de nos satisfazer o tempo todo.

Se eu acredito que a chegada de um filho pode mudar positivamente a realidade de uma pessoa ou família? Em alguns casos, sim. Mas se pararmos para pensar, quem espera alguém nascer para mudar suas ações positivamente perante a realidade e ainda tem orgulho desse plano, pode, mesmo que inconscientemente, estar se entregando como amante do próprio umbigo. É como se disséssemos: “como ainda não tenho um filho, por enquanto, o que eu quero mesmo é que o mundo todo se exploda”.

Vejamos os exemplos: o assaltante, que antes de ter um filho, não se importava se o tiro disparado contra um policial na rua poderia acertar filhos dos outros que já estão no mundo; Os corruptos que desviam nosso dinheiro, mas que agora tentam dar um tempo nas falcatruas para mostrar aos seus pequenos que vale a pena ser honesto e batalhar pelo seu sustento; aqueles que antes não se importavam se estavam machucando algum familiar ao não se relacionar com eles, mas agora é o seu filho que precisa ter uma convivência familiar; motoristas que colocavam em risco a vida de outros, dirigindo de forma imprudente; e por fim, quem não estava nem aí para o seu país ou se tinham crianças e adultos morrendo de fome, de bala perdida ou por falta de cuidados médicos em nossos hospitais públicos.

Freud se preocupou com essa questão. Ele desenvolveu um conceito chamado narcisismo primário para explicar aquela fase da criança onde ela investe toda a sua energia libidinal para si mesma, isto é, só pensa nela e em sua satisfação imediata, como instinto de preservação, proteção. E mesmo sem ter total consciência desse complexo processo, o outro é para ela apenas um meio para se chegar a um fim que, no caso, é servi-la e cuidá-la de todas as formas que contribua para sua satisfação e gozo próprio.

Se essa fase for “superada”, a criança vai, aos poucos, percebendo que nem todos os seus desejos serão atendidos e nem no exato momento que elas desejarem. Com o tempo vamos nos tornando menos autocentrados, e passamos a reconhecer não só as nossas dores, alegrias, angústias e limitações, mas as o do outro também.

O problema é que encontramos algumas pessoas no decorrer dos anos que ficaram estacionadas no narcisismo primário e dali nunca mais saíram. São “adultos-crianças” birrentos, de difícil convivência, pois não aguentam nem eles mesmos e não conseguem enxergar o outro, a não ser como um obstáculo ou como alguém que precisa fazê-los gozar. Talvez seja o caso dessas pessoas que fazem mil promessas após o nascimento do filho, como se antes do desejo delas não houvesse mundo.

Freud escreveu que o amor que vemos dos pais pelos filhos nada mais é do que o narcisismo dos pais renascido e transformado em amor objetal. O que quer dizer em outras palavras, a chegada do filho traz toda aquela carga psíquica do que já fomos um dia na infância, mas a deslocamos para nosso filho, pois não podemos voltar a ser criança. Talvez seja por isso que muitos pais idolatram seus filhos nas redes sociais, na roda de amigos, no trabalho e até na fila do INSS. Na verdade, sem perceber, os pais estão falando do amor por eles mesmos e não do amor pelos filhos. Afinal, ficar verbalizando, socialmente sobre nós mesmos o tempo todo pode pegar mal, então inventamos essa distração para não saberem da nossa carência: falamos dos filhos a todo o momento para falar da gente mesmo.

Dentro de nós ainda vive o nosso passado, com as experiências infantis, de adolescentes, da fase adulta que tivemos. Podemos visitar cada uma dessas fases, mas não podemos voltar a morar nelas.

Se quisermos ter filhos éticos, talvez devamos praticar a ética antes mesmo de eles existirem. Só quem tenta ser ético sabe a dificuldade e investimento diário que é para sê-lo. Se colocarmos a nossa transformação toda como ser humano nas costas da criança que virá, ela já nascerá com dor nas costas e na alma. É como dar uma feijoada para um recém-nascido digerir. As crianças não deveriam vir com a missão de consertar casamento, de suprir carências ou de juntar pessoas que não querem estar próximas. Elas podem vir para somar e dividir e não para consertar os problemas que cabem aos adultos.

Até que você tenha filhos, ajude a construir um mundo melhor para os que já estão por aqui. Como disse o sábio velhinho Rubem Alves: “Amo aqueles que plantam árvores sabendo que não se assentarão à sua sombra. Plantam árvores para dar sombra e frutos àqueles que ainda não nasceram”.

Obs:  O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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