É a mesma e única salvação que Deus nos oferece em Jesus Cristo, que tem sido proclamada e vivida pelos cristãos através dos séculos. Contudo os homens que a professam, e através dela estruturam sua existência, acolhem-na sempre a partir da situação concreta em que se encontram. Esta implica uma multiplicidade de dados, desde os mais gerais como horizonte cultural, organização da sociedade, desafios econômicos, situação política, liberdade de expressão, valores vigentes, até os mais pessoais como classe social, educação familiar, formação escolar, estrutura psicológica, sexo, experiências passadas, atividade profissional, para só citar alguns. E sempre dentro deste quadro concreto que a mensagem salvífica é entendida, aceita e traduzida em práticas. Poderíamos demonstrar nossa afirmação simplesmente percorrendo a história do cristianismo, e apontando, no curso dos séculos e na multiplicidade dos lugares, as diferentes expressões e práticas, que sô enriquecem a compreensão e a vivência da salvação cristã. Alguns estudos já foram realizados neste sentido’. Outros seriam também de se desejar, para que as intuições e práticas pastorais relativas à salvação da mulher, dos pobres, dos intelectuais, dos jovens e dos velhos, dos camponeses e dos citadinos, enfim dos diversos grupos sociais, pudessem passar pelo crivo da reflexão teológica, que as fundamentariam e eventualmente corrigiriam’.
Não vamos entrar por esta trilha, pois nosso objetivo é mais modesto. Apenas pretendemos refletir sobre o impacto do atual contexto sócio-cultural no cristão, que busca acolher a salvação de Jesus Cristo. Mais concretamente vamos ter diante dos olhos a cultura pluralista e secularizada da sociedade moderna, tal como já podemos encontrar em nossas cidades3• O impacto atinge todas as classes sociais, embora diversamente: para as classes populares o fator econômico está chegando a níveis dramáticos•.
Vamos iniciar com uma rápida caracterização da atual sociedade (I). examinando em seguida o que esta situação acarreta para a vivência da fé ( 11). para oferecer numa parte final alguns elementos que nos parecem indispensáveis para esta mesma vivência ( 111).
I. O ATUAL CONTEXTO SÓCIO.CUL TURAL
- Uma sociedade caracterizada pelo pluralismo
Partamos de uma afirmação bem geral e bem conhecida. Luckmann e Berger definem o pluralismo como uma situação na qual existe uma concorrência entre os diversos universos simbólicos ou significações globais da realidade e suas respectivas instituições, todas procurando dar um sentido e estruturação à vida de cada dia. Implica ele um processo histórico de desmonopolização 5 . Opõe·se portanto uma tal sociedade pluralista às sociedades tradicionais, de tipo holista, nas quais uma interpretação global detinha a hegemonia e estruturava a vida social. Com a emancipação dos vários setores da cultura e da sociedade (política, ciência, economia, arte, etc.) fragmenta·se o universo simbólico unitário do passado de cunho eminentemente cristão.
Os diversos setores sócio·culturais tornam·se autônomos, gozando portanto de inteligibilidade e normatividade próprias e apresentando cada um deles sua interpretação da realidade, seu universo simbólico respectivo, simplesmente ignorando ou prescindindo dos princípios cristãos. Esta sociedade pluralista veio para ficar, pois não se pode mais, como no passado, excluir de nossa convivência os que pensam e vivem diferente de nós. Hoje já não é mais possível empurrar o islamismo para fora da Europa cristã, ou mesmo confinar o judaísmo a bairros determinados.
O homem moderno deve inevitavelmente viver em contato com esses diversos setores: vida profissional, vida familiar, vida religiosa, vida cultural, vida de lazer, etc. E como cada um deles dispõe de valores próprios, não se pode evitar que se choquem e retroajam uns sobre os outros, relativizando·se mutuamente ou erigindo·se um deles como setor hegemônico. Dar a dificuldade, própria de nossos dias, de fazer nossos contemporâneos aceitarem uma determinada visão da realidade, apresentada pelas instituições de sentido, como são as grandes religiões. E nem falemos do atual pluralismo religioso, que vem agravar ainda mais uma tal situação.
E como os diferentes universos simbólicos (e suas respectivas instituições) lutam para se fazerem aceitar pelos homens, criam assim um estado de concorrência entre si, onde o conflito não estará ausente.
- Uma sociedade caracterizada pelo econômico
O que aparecia já no horizonte da sociedade pluralista industrial, torna-se realidade em nossos dias. O setor da economia não só se rege por leis que lhe são imanentes, mas ainda consegue impô-las aos outros setores sociais, aparecendo hoje como a visão decisiva para a organização social 6 • Com outras palavras, a lógica da economia invade tudo, transformando homens e coisas em mercadoria, que valem pelo seu valor de troca, independente de seu conteúdo próprio. Assim há uma enorme diferença no status e no sentido que pode ter um objeto de arte numa sociedade pré-capitalista e na atual sociedade pós-industrial: numa ele incorpora e transmite sentido, que pesa na estruturação das pessoas e da sociedade; noutra ele vale apenas pelo seu preço no mercado.
Deste modo a racionalidade técnico-econômica produz certa desculturação: a questão do sentido, como elemento inerente aos demais setores, é posta fora da institucionalização real da sociedade e satelizada para o “mundo das idéias”, onde perde ou vê diminuida sua função social, por carecer de elos orgânicos com as estruturas sociais. Os quadros culturais recebem assim um novo status superestrutura!, secundário; a ordem capitalista tende a aceitar qualquer sentido, pois bem sabe que todos são socialmente inócuos: é o fim da fogueira para os hereges e o início do pluralismo ideológico’.
A ótica econômica, aproveitando-se da fragilidade social dos outros sentidos, tudo reinterpreta e valoriza dentro de sua lógica da produtividade, do quantitativo, do lucro: festas religiosas (semana santa) ou populares (carnaval), esportes ou artes, trabalho ou lazer. Este quadro é agravado pelo problema da indústria moderna de fazer escoar seus produtos. Dotada de uma produtividade virtualmente ilimitada irá ela, por conseguinte, influenciar as necessidades do homem, que são limitadas; daí o controle cada vez maior que têm as empresas nos comportamentos de mercado, manipulando atitudes sociais e criando necessidades, através de uma publicidade de alta qualidade.
E aqui entra um outro dado importante. Numa sociedade pluralista cabe ao indivíduo construir, na profusão de sentidos que lhe é oferecida, a sua própria identidade social. Contudo estes sentidos encontram-se hoje desvalorizados pela hegemonia tranquila do fator econômico. Isto levará o indivíduo moderno a definir-se socialmente sobretudo através do econômico: ele consumirá bens, não pelo seu valor de uso, mas pelo seu valor de classificação e diferenciação social (status). E como a indústria está sempre a produzir novos bens de consumo, encontra-se ele numa corrida sem fim para manter sua identidade 8•
- Uma sociedade caracterizada pela perplexidade
Não se pode negar que atravessamos uma época crítica, devido a uma multiplicidade de fatores, agindo conjuntamente e provocando o surgimento de fenômenos indesejados, com os quais estamos forçosa mente convivendo.
Comecemos pela atmosfera de desânimo e pessimismo deixada pelo desaparecimento do mito do progresso, que tanto embalou os sonhos de nossos antepassados e que, hoje, se vê desfeito pela tomada de consciência sobre os limites dos recursos naturais, sobre o mau uso da ciência e da técnica para finalidades destrutivas e sobretudo pela deterioração do meio ambiente e da qualidade de vida nos países mais industrializados.
Além disso a complexificação do mundo da economia e da organização social e política gerou o Estado moderno, impessoal, burocrático, onipotente, diante do qual o indivíduo sente-se perplexo e impotente. Esta mentalidade radicaliza-se ainda mais na América Latina pela herança deixada por governos autoritários e corruptos; os detentores do poder continuam com os maus hábitos do passado, negligenciando o bem-comum e perseguindo interesses particulares e elitistas, na ordem econômica ou política. i: o Estado perverso que negligencia a prestação de serviços sociais, enquanto interfere no setor econômico para favorecer as elites. Como as instituições democráticas são ainda frágeis; não se vislumbra para esta situação injusta uma solução, dotada da presteza e eficiência requeridas pelo momento histórico; com isso paira no ar um claro ceticismo com relação ao mundo da política com seus personagens, que só não leva a um total desinteresse pela causa pública devido à dramaticidade da situação sócio-econômica nestes países.
De fato a questão da dívida externa vem radicalizar ainda mais as profundas e injustas desigualdades sociais e econômicas; a concentração de poder e de riquezas nas mãos de poucos, diante de uma maioria sobrevivendo com salários insuficientes e condições precárias de vida, é ainda agravada pelos sacrifícios exigidos sempre dos mais pobres e fracos, em tempos de crises econômicas como o nosso. Conseqüência desta tensão e desta frustração, próximas ao limite do suportável, vem a ser a violência, que explode por toda parte e de múltiplas maneiras e que começa a incomodar também as classes mais favorecidas com a modernização destes países.
O descrédito observado com relação aos sistemas globais de sentido atinge redutos dos mais sagrados: ideologias intocáveis, mundividências respeitadas, religiões tradicionais. Falta portanto ao indivíduo moderno um mapa de valores que o guie através da vida e que lhe permita estruturar sua personalidade. A ausência de uma adesão a uma fonte global de sentido deixa-o frágil, oco, sem convicções, levando-o a buscar em tudo sua própria satisfação; com isso as balizas éticas são tornadas inócuas, observa-se apenas a lei de levar vantagem em tudo e tende-se a reconhecer certa legitimidade social ao hedonismo reinante. Bem podemos imaginar os efeitos desastrosos de uma tal mentalidade para os bens públicos nesses países, onde poucos detêm o poder e as riquezas. A impunidade generalizada não passa de uma conseqüência natural.
II -O IMPACTO DESTE CONTEXTO NO CRISTÃO
Comparada com os anos passados não deixa de ser a atual sacie· da de bastante incômoda para o cristão. Vamos expor abaixo, sem a mínima pretensão a sermos completos, algumas dificuldades experimenta -das hoje por cada um de nós, e que têm no contexto sócio-cultural suas raízes.
- A subjetivização na consciência do cristão de conteúdos e práticas religiosas
O universo simbólico do cristianismo, que interpreta a realidade e a ordem social, era respaldado socialmente pela sua aceitação óbvia por parte dos indivíduos. Estes, através de determinados processos sociais, mantinham, por assim dizer, o mundo da fé. Tais processos constituíam o dia-a-dia dos personagens sociais, impunham-se sem mais à sua consciência e representavam a base social da realidade objetiva dos conteúdos cristãos, mais conhecida como “estrutura de plausibilidade” 9 •
Numa sociedade pluralista há uma multiplicidade de visões da realidade; este fato as põe lado a lado, como concorrentes, relativizando e enfraquecendo sua incidência social. Com isto elas perdem a característica de “naturais”, inevitáveis, auto-evidentes; já não são globalizantes, mas parciais, pois dão sentido e organizam apenas parte do mundo de cada indivíduo. Entretanto o efeito maior que se faz sentir diz respeito à desobjetivização dos conteúdos religiosos. De fato estes perdem, na consciência do individuo, o status de realidade objetiva e evidente; são “subjetivados” em dois sentidos: tornam·se assunto privado do indivíduo e são apreendidos por este como fundamentados em sua consciência, e não na faticidade do mundo exterior. Outros sistemas de sentido podem então tomar o lugar dos universos simbólicos religiosos como verdades objetivas.
Assim os cristãos sentem-se hoje na situação de um grupo social determinado, com sua maneira própria de ver a vida, que em alguns ambientes, pode mesmo significar a situação de uma “minoria cognitiva”. Situação desconfortante que, se, de um lado, faz emergir com toda a sua força a fé como opção pessoal, de outro, coloca urgentemente a questão do respaldo para esta fé. Em nosso país ela encontra-se agrava da por uma evangelização insuficiente, pela multiplicidade de seitas inspiradas no cristianismo, pela tendência ao sincretismo e pelo uso, indiscriminado e mesmo mal intencionado, de símbolos cristãos, que aumentam o impacto do pluralismo moderno na consciência do católico.
- O enfraquecimento do universo simbólico cristão mera conseqüência do que dissemos. O pluralismo de visões da real idade as põe inevitavelmente como rivais e concorrentes, debilitando-as mutuamente. O mesmo deve ser afirmado das instituições que as sustentam. Acrescentam-se a este fato a leitura e o uso de conteúdos cristãos a partir de perspectivas não-cristãs, ou simplesmente mais sintonizadas com a cultura dominante, que já se deu no passado, mas que hoje é bastante mais danosa pelo alcance dos modernos meios de comunicação, especialmente a televisão e o cinema .
Numa sociedade pluralista o individuo desempenha diversos papéis nos variados setores da mesma. Ele é pai de família num âmbito, processador de dados em outro, membro da Igreja, vizinho de rua, consumidor de bens, etc. Cada setor social goza de uma inteligibilidade e normatividade próprias, que não deixam de impregnar a mentalidade do indivíduo. Assim o católico hoje encontra maior dificuldade do que seus antepassados para aceitar valores emitidos pela Igreja, e que não vão na linha dos valores dos outros setores de sua vida.
Outro fator responsável pelo debilitamento da visão cristã é a diferenciação progressiva dos campos do saber. Cada um deles basta·se a si mesmo e apresenta-se como um setor autônomo, que dispensa uma justificação teórica de tipo religioso. Naturalmente no passado não foi assim, quando a cosmo visão cristã constituia a referência suprema que iluminava e ordenava socialmente os diversos campos do saber. E como o universo Simbólico religioso, intrinsecamente, diz respeito à vida do individuo em sua totalidade, na medida em que, como acontece em nossos dias, ele norteia só parcialmente a existência do cristão, aparece ele como não tão necessário para o dia·a·dia 10, diminuindo assim sua incidência na consciência do homem moderno.
E devemos reconhecer que a riqueza de experiências e a super abundância de fontes do saber, oferecidas ao homem moderno como nunca se deu na história da humanidade, impedem hoje uma integração plena de todo esse material com sua fé, seja individual ou socialmente. A enorme extensão do saber torna-o consciente de sua ignorância, bem como desconfiado de seus conhecimentos, que lhe parecem provisórios e superáveis. Daí participar ele de um cético relativismo, difuso mas atuante na sociedade, que não deixará de ter conseqüências para a sua fé e sua prática cristã.
- A dificuldade do católico com o magistério da Igreja
Este é um fenômeno bastante espalhado, atingindo toda classe de pessoas, embora com matizes diversos. Não seria fácil elencar a série de causas responsáveis por esta situação. Não entraremos por ar, pois pretendemos tão somente examinar a mudança de atitude de muitos católicos com relação à Igreja hierárquica, perguntando pela transformação de sua consciência eclesial.
Naturalmente não vê mais o católico de hoje a Igreja como aquela instituição, segura de si e proclamadora da verdade, como a viam seus antepassados. O aggiornamento levado a cabo pelo Vaticano 11, um maior conhecimento da própria história desta instiuição, com suas luzes e sombras, sua incapacidade de oferecer uma cosmovisão católica por causa do volume e complexidade do atual saber humano, o próprio esforço da teologia em formular as verdades da fé dentro da linguagem hodierna ou de valorizá-las pela sua incidência na transformação da escandalosa situação social, a diminuição da plausibilidade da Igreja no mundo moderno, como vimos mais atrás, o individualismo multiforme reinante na sociedade, a concorrência de outras instituições religiosas numa cultura que se quer .pluralista e tolerante, todos esses fatores, e ainda outros que certamente deixamos de mencionar, atingiram e continuam atingindo a consciência do católico, nosso contemporâneo.
As sondagens de opiniões apenas confirmam com números e porcentagens o que já era sentido por pastores e leigos. Há muitos pontos da doutrina e da ética, proclamados pelo magistério eclesiástico, que não são acolhidos nem seguidos por boa parte dos católicos”- O argumento da autoridade e da tradição pesa pouco em nossos dias. Exige-se uma fundamentação de tudo. E mesmo quando isto é realizado, permanece, muitas vezes, o discurso do magistério, inócuo e ineficaz, por soar demasiado formal, teórico, universalizante, pairando acima das aporias bem concretas da turbulenta vida hodierna.
Poder-se-ia perguntar se uma das causas preponderantes neste estado de coisas não poderia estar no próprio pluralismo da sociedade moderna, onde os católicos vivem em contextos tão diversos que dificultam sobremaneira um discurso universal. Sem negar a necessidade de tal discurso, poder-se-ia pôr a questão se experiências cristãs específicas, por se darem dentro de um determinado contexto vital, não requereriam ser entendidas nos referenciais teóricos de tal contexto, que possibilitariam também a descoberta de práticas próprias, decorrentes do mesmo.
- O crescimento de uma religiosidade não eclesial
Como vimos anteriormente, a visão cristã, como todo universo simbólico religioso, atinge de fato o indivíduo na medida em que consegue iluminar e estruturar sua vida concreta. Até anos atrás em nosso país, o fato de uma sociedade menos complexa e a hegemonia tranquila da Igreja Católica garantiam que o discurso da hierarquia incidisse no dia·a-dia dos fiéis. O contexto social homogêneo, católico, estável, constituía o pressuposto social para o necessário enlaçamento entre fé e vida.
Hoje o pluralismo da sociedade faz o católico viver situações das mais diversas e passar por experiências mesmo discrepantes entre si. A Igreja é apenas uma instituição religiosa ao lado de outras muitas, e ainda concorrendo com outras instituições de sentido, de cunho não re ligioso. Sua proclamação oficial, embora correta e ortodoxa, soa demasiado teórica e formal para o católico, não lhe penetrando diversos seta· res da vida concreta. Este, por sua vez, ansioso por encontrar sentido que integre e legitime o seu dia-a-dia, irá buscar o mesmo em outras fontes, religiosas ou não, que a sociedade pluralista lhe oferece. Se esses dados não-católicos e mesmo não-cristãos conseguem estruturar sua experiência religiosa pessoal, mesmo sem romper com a Igreja, viverá este católico um tranqüilo sincretismo religioso. Não esqueçamos que a cultura moderna está fortemente marcada pelo individualismo, que anulará, sem mais, possíveis escrúpulos do mesmo”. Além disso pessoas com idéias alheias à fé, mas realmente significativas para o católico, irão inevitavelmente influir em sua visão religiosa, interpretando e estruturando os setores e as problemáticas omitidas ou mal-compreendidas no discurso eclesiástico.
Este desafio à pastoral encontra-se agravado na América Latina por uma evangelização insuficiente e pela escassez crônica de clero. Neste sentido seria muito importante, para perdermos ilusões, uma pesquisa que nos mostrasse de certo modo o que crê realmente o católico brasileiro, sobretudo das cidades, onde se encontra a maioria da população.
Voltando à pergunta que fazíamos no item anterior, não seria o caso de possibilitar que os católicos pudessem, livre e abertamente, partilhar suas experiências próprias, suas perplexidades e aporias, criando uma linguagem que as articulasse com sua fé, devolvendo à mesma sua característica essencial de fonte de sentido para a vida humana? Haveria outra modalidade para os católicos poderem enfrentar, e enfrentar com espírito crítico, as outras concepções da realidade, os outros valores, que os atingem cada dia através dos outros setores de sua vida?
III. A VIVENCIA CRISTA NO CONTEXTO PLURALISTA
E bem mais fácil apontar e descrever as dificuldades do que oferecer soluções para as mesmas. Mesmo sem pretendermos trazer respostas prontas ou saídas salvadoras para a pastoral do homem urbano, não podemos deixar no silêncio algumas pistas de solução, que emergem da própria reflexão feita até aqui. São meras pistas, que requerem ulterior estudo e aprofundamento, maior concretização e articulação, e sobretudo passagem pela pastoral com conseqüente avaliação. Expomo-las aqui bem consciente destas insuficiências.
- A necessidade da experiência de Deus no atual contexto
Se a fé do católico na sociedade moderna não é mais respaldada pela sociedade, e nem mesmo pela Igreja, como em outros tempos, então deverá fundamentar-se no próprio Deus, experimentado no interior desta mesma fé, ou com outras palavras, deverá basear-se numa experiência pessoal de Deus. E neste sentido que Karl Rahner afirma que o cristão de amanhã ou será um “místico”, ou simplesmente não será mais cristão”. Do que foi dito até aqui não ficam dúvidas quanto à incapacidade de a moderna sociedade pluralista, agravada por forte crise de valores, pretender ser uma estrutura de plausibilidade para a vida cristã.
Por outro lado sucedem-se, em número cada vez maior, fenomenos que demonstram uma dificuldade crescente, por parte da Igreja, de fazer-se aceitar como instância única e normativa para a consciência religiosa do católico. Dito claramente, o discurso da hierarquia eclesiástica não está conseguindo, por si só, estruturar-lhe a existência. Ao articular sua biografia pessoal o católico utiliza-se não só de elementos do discurso eclesial, mas também de outros materiais que ele busca alhures. São várias as razões que explicam este fato. Poderíamos começar· pelas decantadas deficiências da própria proclamação eclesial, como seriam as pregações formais, teóricas, dogmatizadas ou moralizantes, ou os discursos demasiado voltados para a própria instituição. Em seguida elencaríamos o individualismo que domina nossa atual cultura.
Contudo o fator, talvez o mais decisivo em nossos dias, constitui o divórcio entre as representações que tem o católico do cristianismo e as suas experiências humanas significativas. Sua visão vem marcada pelo catecismo da infância e não se adapta mais a suas experiências de adulto. Mas mesmo que tivesse uma melhor formação religiosa este hiato estaria diminuído, mas não desapareceria. Pois a moderna sociedade pluralista apresenta uma riqueza tal de saber, de perspectivas, de setores, de experiências, de fontes de sentido, e tudo isto em contínuo crescimento, que se revela impossível uma tranquila cosmovisão cristã, como se deu no passado, quando se conseguiu uma grande integração entre fé e mundo 14 • Este fato atinge também o discurso do magistério eclesiástico. Pois hoje a Igreja apresenta-se como uma instituição ao lado de outras, ainda que com grande autoridade moral e confiança popular. Sua visão da realidade, mesmo querendo-se universal (o que um cristão não pode pôr em dúvida). aparece como setorial, particular aos olhos de muitos de nossos contemporâneos; há mesmo âmbitos desta sociedade que não tem uma relação próxima com a Igreja, e nos quais, muitas vezes, vive o indivíduo boa parte de sua vida. Aí podem-se dar experiências fundamentais para o individuo, abrangentes. eticamente decisivas, e que explodem os quadros dos discursos eclesiásticos.
Além disso não podemos exigir da maioria dos católicos, com uma evangelização que deixa a desejar. uma atitude critica diante das outras fontes de sentido na sociedade pluralista, muito próximas dele como são seus grupos sociais, seu ambiente de trabalho, expectativas de seus familiares, etc. Conseqüentemente ele irá, muitas vezes, com aqueles elementos que lhe parecem mais aptos para iluminar, integrar, unificar, orientar e dar sentido à sua vida concreta, construir sua visão sincretista da existência, tranqüila e satisfeita. Talvez possa o leitor elencar outros fenômenos que confirmam o que afirmamos, mas parece-nos já clara a mudança efetuada na consciência de muitos católicos, que não mais consideram, como no passado, a Igreja como fundamento de sua fé (estrutura de plausibilidade), e nem mais aderem sem reservas à sua pregação.
Respaldar sua fé na experiência pessoal é uma exigência tão antiga como o cristianismo. De fato é o próprio Deus quem nos capacita a crer em Jesus Cristo, é o próprio Espírito Santo quem garante a solidez de nossa opção. Contudo pôde esta verdade não estar tão presente na consciência de nossos antepassados. devido à força do suporte social da fé, que eram a sociedade e a Igreja. Hoje contudo ganha ela uma importãncia enorme.
Esta ação de Deus é captada pelo homem como experiência de Deus dando-se no interior de suas experiências humanas, como experiências fortes com determinadas características; elas não se ajustam ao nosso familiar quadro de referências, princípios e expectativas. e, contudo, integram, unificam e dão sentido às nossas experiências plurais; são portanto experiências qualificadas, que atingem o homem todo, intelectual, volitiva e afetiva mente e nas quais ele experimenta, ainda que incoativa, parcial e fragmentariamente, a salvação; são elas que o levam a assumir a práxis de Jesus, a ir ao encontro do próximo necessitado, mesmo que isso se faça progressivamente”.
Estas experiências de Deus, que plenificam e dão o sentido último à vida do homem 16, continuam se dando em nossos dias, embora possam não estar sendo reconhecidas como tais. De fato toda experiência se dá num horizonte de compreensão que a qualifica; a experiência de Deus pressupõe um contexto de fé para ser captada como tal. São experiências humanas significativas em nossa história pessoal, que mudam nossa percepção da realidade ou que deixam conseqüências para nossa vida futura, e onde percebemos a mão de Deus devido a nossa fé 17• Mesmo continuando a se darem numa sociedade pluralista será mais difícil reconhecê-las como tais, por não se adequarem, muitas vezes, às formulações tradicionais de experiências passadas, ou simplesmente por carecerem da moldura cristã que as identificaria. Pois numa sociedade pluralista, na qual não mais é possível estabelecer-se uma ligação direta de todos os seus setores com a visão cristã do mundo e do homem, autênticas experiências de Deus estarão inevitavelmente sendo interpretadas a partir de outros quadros hermenêuticas. Daí a conseqüência, já aludida anteriormente, do esvaziamento do discurso da Igreja, por não iluminar as experiências significativas do homem moderno, e o recurso sincretista a outras interpretações da realidade.
E fundamental que a Igreja exerça o objetivo que é, afinal, a sua razão de ser: ser mediação de salvação para o homem, levando·o a acolher e responder à interpelação de Deus. Para isso é imprescindível que ela enfatize para o católico o valor fundamental do encontro pessoal com Deus, a cujo serviço estão todos os seus esforços pastorais. F unção mistagógica de levá-lo ao encontro com o Mistério, e de ajudá-lo a reconhecer a presença e a ação deste em suas experiências humanas significativas. E numa sociedade urbana e secularizada deverá ela incentivar, não só que tais experiências sejam vividas, mas também narradas, formula e dão sentido às nossas experiências plurais; são portanto experiências qualificadas, expressas, mesmo que com expressões novas ou a partir de ângulos não habituais.
A novidade do discurso apenas comprova sua incidência na novidade das situações postas pela atual sociedade.
- A formação de “grupos de vivência”
Não seria difícil apresentar uma argumentação teológica a favor dos pequenos grupos de fé no interior da Igreja; sobre isso existe bom material, comprovando sua pertinência com textos do Novo Testamento, da história da Igreja, do Vaticano li e até mesmo da exortação apostólica Christifideles 18 • Não entraremos por aí, pois nosso interesse é outro. Diante do forte impacto da sociedade pluralista na consciência do cristão, como vimos anteriormente, estes grupos são, de fato, a terapia, necessária e urgente, para fazer frente a esta situação.
Vejamos. O cristão é aquele que interpreta suas experiências humanas significativas à luz da fé. Ele o faz, em nossos dias, resistindo e opondo-se às outras leituras existentes na sociedade, às vezes com maior força social do que a sua. Só num grupo de pessoas vivendo sua mesma situação encontrará ele apoio e força para continuar sua luta, só aí deixará ele de sentir-se solidário e “diferente”. Fora desta pequena comunidade de fé dificilmente deixará o cristão de ceder à mentalidade individualista e cética, hoje reinante. Para tal necessitaria ele de uma sólida formação teológica e cultural, juntamente com uma reflexão pessoal, crítica e assídua, sobre o que se passa em sua volta. A falta de quadros competentes e suficientes da parte da Igreja, e a carência de tempo e disposição devido à agitação da vida moderna, impossibilitam tanto um como outro. Daí a urgência do grupo como respaldo social para a sua fé.
Característica importante destes grupos é que sejam constituídos por pessoas vivendo experiências semelhantes. A vivência cristã não se justapõe à vida real; pelo contrário, ela só existe no interior desta última, consistindo em vivê-la como cristão. Com isso fica clara a importância dos desafios e das problemáticas vividas pelos membros do grupo, como cristãos, para a consistência mesma de sua fé. Acontece que na sociedade altamente diversificada em que vivemos, vê-se o cristão em situações concretas, muitas vezes ignoradas, ou mesmo não emergindo explicitamente no discurso do magistério, como seria de desejar. É então no interior destes grupos que o esforço por viver tais situações, como cristãos, encontrará sua formulação, seu enriquecimento, sua eventual correção, e sobretudo ajuda e estímulo para não esmorecer. Talvez brote daí um discurso novo, resultante do encontro da fé com situações humanas novas, substituindo em parte formulações de experiências passadas, desvinculadas da vida real hodierna e portanto condenadas irremediavelmente a uma certa folclorização e inocuidade.
Uma certa homogeneidade entre os componentes do grupo irá favorecer também a descoberta de práticas condizentes com as situações reais vividas pelos mesmos. Estas práticas são imprescindiveis para se manter em vida a vivência cristã. São elas que comprovam estar a fé, de fato, estruturando a existência concreta da pessoa. Nota-se contudo em nossos dias, que freqüentemente, as práticas tradicionais preconizadas pela Igreja dizem pouco para a vida de muitos cristãos. Ou ainda observa-se que o discurso oficial permanece em generalidades quando se trata de apontar práticas concretas. A própria teologia da libertação não consegue concretizar mediações, que possibilitem a determinados grupos sociais viverem a luta pela justiça. Daí a importância de permitir a estes grupos de fé encontrarem práticas concretas a partir de seus contextos de vida. Por outro lado reconhecemos que os “movimentos” na Igreja têm sua origem nas mesmas insuficiências acima apontadas, mas refletir sobre a relação entre esses grupos e os “movimentos” extrapola o objetivo deste trabalho 19 •
Naturalmente deverão, seja o discurso, sejam as práticas, emergentes destes grupos, confrontar-se com o discurso e as práticas da Igreja universal. Daí brotará um mútuo enriquecimento, que tanto ajudará à Igreja a alargar o horizonte de seus pronunciamentos e a extensão de suas práticas, como também trará aos grupos em questão o respaldo da palavra autêntica, a correção de possíveis desvios, a valorização, por· que generalizada para outros cristãos, de sua caminhada. Todo caminho novo tem uma dose de risco. Este poderá ser menor, se o grupo contar com membros de formação religiosa sólida e de real vivência espiritual. Mas o confronto é indispensável já que seus membros vivem no interior de uma cultura secularizada, sujeita à ideologia do econômico e da produtividade, cética e hedonista, profundamente individualista, o que poderá contaminá-los em maior ou menor alcance. De qualquer modo o que se afirma aqui é a necessidade e urgência de um discurso cristão plural e de práticas também plurais numa sociedade caracterizada pelo pluralismo. No fundo temos como preocupação maior, em nossa reflexão, a salvação do cristão; sabemos que este pertence a uma Igreja, assim como estes “grupos de vivência”; a soteriologia não pode ignorar a eclesiologia, e com relação a esta última a reflexão deve acompanhar a vida concreta destes grupos como vem se dando com as Comunidades Eclesiais de Base na América Latina.
3. O voltar-se para os pobres
A experiência pessoal de Deus e a participação ativa em grupos de fé não bastam, em nossa opinião, para sustentar e alimentar uma vivência cristã na atual sociedade. Vejamos porque. A experiência de Deus, por fundamental que seja, é experiência interpretada, entendida e vivida a partir da própria pessoa, naturalmente à luz da fé, já que se trata de um cristão. Este quadro de interpretação pode-se limitar a uma perspectiva individual, em si legítima e presente em toda experiência de Deus como experiência de sentido e de plenificação. Mas ele não deve se exaurir no âmbito da pessoa, sob pena de não deixar emergir elementos fundamentais de toda autêntica experiência da graça, conforme o testemunho das Escrituras. Neste sentido uma tal experiência, enquanto consciente, conhecida, será apenas parcialmente cristã. Igualmente a participação em grupos afins, mesmo que levada a cabo em nome da fé, tende a aprisionar seus membros em problemáticas comuns, que podem e devem ser debatidas, mas que se revelam incapazes de transcenderem-se a si próprias. Com isso o horizonte de tais encontros estará confinado às preocupações próprias de uma determinada classe social, referentes sobretudo ao âmbito familiar ou profissional. E somente no interior deste horizonte se articulará o discurso da fé e se concretizarão práticas cristãs.
Por outro lado o critério decisivo de autenticidade da vivência cristã é a caridade, o amor ao semelhante, e ao semelhante necessitado, impotente, pobre (Mt 25, 34-46). Esta caridade tem um dinamismo universal, não podendo se limitar a um determinado grupo de pessoas, sob pena de não ser o que parece. Naturalmente a ação de Deus procura levar a pessoa a esta caridade, como nos confirmam a experiência das primeiras gerações, sedimentada no Novo Testamento, e nossa própria experiência pessoal. Contudo a história do cristianismo nos adverte que, apesar do dinamismo da ação do Espirito e da escuta na fé da Palavra de Deus, expressões e práticas cristãs podem se apresentar, e de fato se apresentaram, bem estreitas e parciais. A questão é sempre a mesma para todos os tempos: como romper os limites do próprio quadro de interpretação, como conseguir dados hermenêuticas que ultrapassem o circulo de minhas experiências?
É aqui que entra a terceira condição para a vivência cristã na atual sociedade. Não vamos repetir tudo o que já foi dito e escrito sobre a opção preferencial pelos pobres, seja da parte do magistério, seja da parte dos teólogos 20 Nem iremos insistir que um amor fraterno que queira merecer, hoje na América Latina, o nome de cristão, deva necessariamente chegar até as camadas mais sofridas, que constituem a grande maioria populacional deste subcontinente (Puebla 327). Dentro da perspectiva adotada neste trabalho interessa-nos sobretudo o que se chama, em nossos dias, “o potencial evangelizador dos pobres”. Cada vez mais se comprova que, sem um contato direto com pessoas sofrendo as conseqüências da sociedade capitalista, dificilmente se cai na conta do que tem de revoltante, absurda e anticristã, a mentalidade que lhe é subjacente. A miséria das massas, com tudo o que implica de humilhações, insegurança, doenças, desemprego, impotência, ausência de liberdade e de dignidade humana, aparece como o produto, o lixo, da hegemonia do econômico, da produtividade, do individualismo hedonista e do consumismo. São rostos concretos que vão levar os grupos cristãos a libertarem-se dos horizontes estreitos de sua classe social e a perceberem que a dinâmica de sua fé os impele para mais além. Além disso a experiência dos valores humanos e cristãos, vividos ainda nas classes populares e já em franca desaparição nos outros setores da sociedade secularizada, mexem sem dúvida com a compreensão que eles têm do cristianismo.
Contudo mais do que a recuperação da mensagem cristã, sem compreensões redutoras, são as práticas decorrentes do contato direto com o mundo dos pobres que irão influenciar decisivamente a vivência cristã dos católicos mergulhados na atual cultura urbana. Pois todas elas pedem deles o que vai diametralmente contra a ideologia individualista, a saber, a gratuidade. E esta exige que se deixe a ótica utilitarista, que se considere criticamente o atual consumismo, que se distancie corajosa· mente dos hábitos da própria classe, que se experimente a reprovação e a rejeição da mesma (às vezes dos próprios parentes), que se renuncie a uma vida tranqüila e sem conflitos, enfim que se procure viver em direção contrária ao egoísmo reinante. Estas práticas darão ao cristão, vitalmente, os pontos de referência que o libertarão da lógica asfixiante da sociedade de consumo. Só assim ele será plenamente homem e estará contribuindo para a construção de uma sociedade realmente humana 21 .
Estes três elementos que nos parecem imprescindíveis para a vivência da fé nesta atual sociedade urbana, e que portanto também deveriam receber especial atenção da pastora I da Igreja, não se situam sucessivamente na vida do cristão, mas devem estar presentes uns aos outros, articulando-se entre si, com ações e retroações mútuas. Assim a experiência de Deus será lida à luz das contribuições dos discursos e práticas oferecidas pelos grupos de vivência, bem como das experiências feitas com os pobres. O mesmo se poderia dizer dos grupos de fé ou dos contatos com os mais empobrecidos .
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