Assim diz Ozeias no cap. 12. No entanto, neste meio tempo o povo cresceu, e a vida traz mudanças. Se pudesse, o profeta levaria o povo de volta para suas origens, lá no deserto, onde tudo começou. Eu tenho o mesmo desejo. Porquê volto todos os anos para o Interior de Lago da Pedra? Tenho saudade dos anos de oitenta, em que a libertação foi gerada. Será que ela vai sobreviver? Os LUGARES SANTOS para mim estão entre Pau Santo e São Manoel. Neste ano teve um motivo especial: a festa dos 30 anos da conquista da terra em Ludovico, que seria no dia 8 de dezembro. Planejei nove dias para a viagem, para visitar ao todo doze comunidades.
Desta vez fui com nosso Fiat, que outros subestimam, mas ele agüentou tudo: asfalto e piçarra, poeira e pontes perigosas. A quem iria convidar, daqui de Teresina, para esta viagem? A legionária Dona Júlia, que durante muitos anos morou no Maranhão, alegrou-se com o convite. E Raimundinha ficou feliz com a perspectiva de rever o lugar de sua infância. No fim ela declarou que foi o maior presente do ano.
O primeiro dia foi dedicado à pesquisa. O poeta e cantor, o sanfoneiro não- vidente Patrício que morreu, foi muito importante no trabalho de conscientização das Comunidades. Em Zé Machado, onde viveu, procurei amigos acompanhantes do músico. Ele tocava tanta coisa, mas, fora de três, a gente não sabe quais são os cantos de sua autoria. Meu trabalho deu pouco fruto. Achei muito entusiasmo, mas nenhum registro. Raimundinha logo encontrou amigos do pai dela, o MANOEL CABEÇA BRANCA de Cajazeiras que é muito lembrado. Antonio Jonas ficou feliz de encontrar a filha do seu amigo. Contou coisas macabras de como a morte dele foi contratada. O homem que era forte na A.C.R. (Animação Cristã no Meio Rural) era um espinho na carne dos fazendeiros. Manoel pegou sua mulher e dez filhos para ir ao futuro incerto, mas Raimundinha ficou, pois já era independente.
No Interior a gente vê coisas novas: talão de luz vem nas casas – já se vê máquina de lavar e até ar condicionado. A motocicleta está em todo lugar e por meio dela os povoados são integrados. O êxodo rural ficou menos. Ninguém ignora estas vantagens. Mas esta adaptação trabalha contra o status especial que a comunidades conquistaram: de serem ilhas com terra livre, onde não entram certas regalias, com compromisso de não-devastação da natureza. Com isto a gente não pode enricar ligeiro. Só no tempo do aperto deu para manter a moral. Hoje, muitos não obedecem mais aos princípios. Ozeias iria se desesperar. Está na vista o número menor dos participantes na igreja. Não querem ser lembrados. Mas um pequeno resto continua sem pregar aos outros. Eu faço questão de olhar direito e consolo o Profeta: Não está tudo perdido.
Por exemplo: Quando passei perto de uma roça queimada, a má consciência do homem estava na cara, e o protesto era grande no povoado. – No Centrinho do Acrísio já aparece caça na mata intacta, e caçadores vêm de longe. O povo do lugar prende as motos e passa uma lição aos invasores: Porque não poupam o mato lá onde estão? – No Pau Santo se ouve canto inédito de pássaros, e logo nasce o instinto. Mas Antonio Batista adverte no Culto Dominical: O que nos adianta o mato se não tiver pássaro cantando dentro? – Em outro lugar a terra de um proprietário entrou na gleba comunitária sem ele querer. O homem obedece às leis e deixa a natureza viver. – Otacília é uma AGENTE DE ANTICORRUPÇÃO bem odiada. O que é que ela faz? Fiscaliza por exemplo a merenda escolar: se é válida ou comestível ou se ao menos existe. Com as provas, vai até a Promotora e assim desafia os políticos. – As mulheres conquistaram junto ao Governo estadual a declaração do DIA DA QUEBRADEIRA DE COCO. No dia 24 de setembro se comemora o dia destas trabalhadoras que se orgulham de sua atividade humilde. Seu trabalho fornece o material para uma fábrica de extração de óleo de babaçu, de iniciativa popular, que importa para a Inglaterra. Em todo lugar se vêem montes de côco: o trabalho para as horas livres. Dona Júlia conhece este trabalho e logo começa a bater. Nos bons tempos ela quebrava 17 quilos por dia, coisa de recorde mundial. – O governo incentiva a privatização das terras conquistadas, mas a diretoria não quer saber: Ficamos com títulos comunitários. – No café da manhã ouço uma confissão pública do dono da casa: Eu já fiz muita barbaridade na terra, até secar uma riacho. Mas hoje defendo toda nascente.
O ponto alto da semana foi o dia 8 de dezembro em Ludovico. Às oito hs teve um café comunitário na frente da igreja. Depois, um grupo de jovens celebrou uma mística silenciosa. Numa espiral feita de sementes se viam alguns números de anos: a situação antes de 1980, depois a conquista da terra em 1987, em seguida a chegada da LUZ PARA TODOS a partir de 2010. A espiral terminava junto a um computador que uma menina manuseava, sem ligar para mais nada. Eu fui, sem fazer parte da peça, e peguei sementes que saiam do outro lado da aparelho. Não é possível que a técnica tenha a última palavra. Na missa da noite usei o SERMÃO DO MAIORAL DOS PATOS SELVAGENS do Filósofo Kierkegaard: “Louvado seja o Criador que deu ao povo dos patos tantas vantagens: asas para voar e patas largas para andar e nadar”, sem mencionar que este povo deixou-se domesticar e já não voa mais. Não adianta exaltar o grande passado, se tivermos desistido da liberdade. – Ozeias está com vontade de chorar. Será que desistiram mesmo? – Eu levo o Profeta para visitar três casas. Primeiro vamos para a casa da Diocina que lutou 30 anos com o filho Bruno que nunca andou nem falou e agora faleceu. Ela faz parte de um pequeno grupo que produz sabão de côco babaçu. A palavra dela, quando vê malfeitoria na Comunidade, é temida e obedecida. – Nazir lutou muito para criar os filhos sem pai. Sua pequena estatura nunca se eleva, e sempre é respeitada. – Rosalina vai em frente sem discutir. Ela tira sua força de um Palmeiral fechado, atrás da casa, onde os raios do sol não tocam o chão. Alí ela trabalha. Ali faz suas orações. Será que é o JARDIM CERCADO do Cântico dos Cânticos?
No fim da semana ainda teve um chamado especial para uma visita de enfermo. – Mas quem é que está doente? – Ainda se lembra do Centro dos Passarinhos, onde morava a Betinha que o Senhor tomava nos braços, enquanto ela cantava MEU BOM JOSÉ, MEU BOM JOSÉ? A sofredora (na foto, a do meio) é mãe de duas filhas e foi atormentada por um tumor na cabeça. Para o caso de uma cirurgia o médico dava as piores expectativas, mas ela anda e fala e ordena o raciocínio. – Na imposição dos Santos Óleos tive que olhar para o cabelo dela que parecia uma mata derrubada. Como agüentaste, Betinha? Cirurgia, 35 sessões de Radio- e não sei quantas de Quimioterapia. – Esta visita com o almoço em seguida foi desta viagem o solene e melancólico AMEM. (Teresina, dia 16 de dezembro de 2017)
Obs: O autor é Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrópolis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.
Imagens enviadas pelo autor.