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Alguma vez você já contabilizou ou avaliou o número de projetos pessoais que abandonou durante a vida? Porque é que temos tanta dificuldade em manter relacionamentos e afetos, terminar e fechar o “ciclo” de cursos e estudos que nós mesmos escolhemos? Parece-me que até o desejo de movimentar-nos em direção à realização e término dos projetos, sejam eles simples ou complexos, nos foi roubado. Tudo a nossa volta perde o brilho muito rápido onde vivemos a todo tempo, entre a rápida euforia e o tédio, que se tivesse uma cor, pra mim seria cinza.

Irônico que sobre essa questão tão complexa da “modernidade líquida”, título de um dos livros de Bauman, pipocam gurus opinando e garantindo que lendo o seus livros, assistindo a seus vídeos, ou se estiver presente em dois dias de encontros fechados preparados por eles, nos mostrarão o segredo e o caminho certo que mudará a nossa vida para sempre. Seremos transformados de uma tal maneira, que independentemente do nosso passado ou história de vida, identificaremos (somente por eles) o real motivo porque não demos certo e porque agora seremos “vencedores”.

O problema é que pouco tempo depois de experienciarmos essa epifania vendida pelos milhares de gurus que ensinam a fórmula mágica da existência, começamos a cair nas mesmas questões de antes e repetir os mesmos comportamentos e pensamentos que não gostamos em nós. Nossa psique pode funcionar como um elástico, onde esses “sábios” o esticam ao máximo para nos sentirmos poderosos, mas ao ser solto, esse elástico volta ao seu estado original (e eles não estarão por perto quando isso acontecer).

Freud chamou esse processo do elástico de tendência à repetição. Se não elaborarmos esses conflitos dentro da gente, seremos eternos repetidores e prisioneiros das mesmas questões, incluindo essa de não conseguirmos manter ou terminar nada do que começamos. Mas ele nunca disse que esse processo de autoconhecimento e de quebra da repetição teria uma fórmula pronta. Pelo contrário, para a maioria de nós, precisaríamos de anos de análise, suor e lágrimas para sermos mais constantes em nossa história. Todo mundo sabe que começar qualquer projeto, é bem menos custoso do que mantê-lo.

É claro que existem projetos que temos que abandonar devido aos infortúnios contingenciais ligados às diversas realidades psíquicas, sociais ou familiares incontroláveis que fazem parte da nossa existência. Comumente tais realidades diminuem nossa humanidade, e geram uma espécie de dor sem sentido, daquelas que não precisaríamos passar (mas definitivamente não escrevo sobre elas nesse texto).

Refletindo sobre a minha história e de alguns pacientes, suspeito (pois não tenho certeza de quase nada) de possíveis dificuldades que temos e que nos levam a essa inconstância desenfreada.

Uma delas diz respeito à forma como nossa sociedade atual e grandemente excludente se apresenta e funciona, na qual não conseguimos fugir, onde quase tudo é líquido, e a mudança é tão rápida que, quando percebemos, ela já mudou de novo. Sabe quando a pessoa opta por comprar o celular ou roupa do momento e após adquiri-los descobriu que os produtos já estavam fora de moda? Inconscientemente sentimos uma força nos impulsionando para correr atrás da troca ou mudança desses produtos adquiridos recentemente, ou da carreira, ou ainda das pessoas com quem nos relacionamos em geral. E, quando se vê, nossos projetos e planos iniciais já foram substituídos sem nem termos chegado à metade do caminho que havíamos planejado. É dessa fonte que nasce aquela sensação de estarmos perdidos e é onde os gurus estão só esperando esse fenômeno acontecer com você para, em dez passos ou dez slides, lhe vender o caminho que lhe trará felicidade plena, fazendo de você a pessoa mais focada, confiante e resolvida do mundo.

A segunda é a extrema dificuldade que hoje em dia temos em lidar com as nossas frustrações diárias. Parece-me que o tempo todo nos é dito que temos que fazer apenas as coisas que amamos e que nos dão prazer imediato, mas quem é minimamente responsável e maduro, sabe que essa tarefa é impossível. Seja qual for a sua escolha de vida, quase tudo tem um lado chato e quase desanimador, mas que é necessário realizá-lo. Quando escolhemos não fazê-lo, podemos parar e não terminar o que começamos. Lembro-me da extrema dificuldade que tive para ser aprovado na matéria de estatística no curso de psicologia, pois além de eu ter certo bloqueio com números e planilhas, eu não entendia muito bem o sentido de estudar estatística naquele momento do curso. Para eu ir até o fim da área de formação que escolhi, eu tive que lidar com as minhas limitações e frustrações inclusive das matérias das quais eu nunca gostei.

Seja para aprender um instrumento musical, estudar, trabalhar, fazer algum exercício físico ou se relacionar com alguém, sempre teremos que conviver com as dores e nossos pontos cegos ligados a essas práticas. Mas não existe fórmula mágica que só nos proporciona prazer. Nesse sentido, quanto mais a pessoa for madura e analisada internamente, mais ela suportará essa realidade. Em algum momento, e sei que cada um tem o seu tempo, precisamos abraçar o que escolhemos com a lucidez de que dentro desse abraço experimentaremos prazer, alegria e satisfação, mas também dor e abatimento.

E por último e não raramente, para não fechar determinados ciclos, nos boicotamos inconscientemente, procrastinando ou abandonando nossos sonhos pelo temor neurótico de não darmos conta do que escolhemos, agora que somos socialmente e legalmente autorizados a fazê-lo. Por exemplo, quando o namorado(a) vira esposo(a), o(a) filho vira pai/mãe, o estudante e o estagiário viram professor ou profissional da área, ou quando o funcionário agora pode abrir seu próprio negócio.

Essa sociedade (que não podemos esquecer que somos todos nós), não permite falhas, exigem padrões e adaptações inalcançáveis de vida, mas como Jiddu Krishnamurti disse “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. Então, o que nos resta? Andar na contramão dessa neurose social e nos permitirmos errar, mesmo tentando sempre agir responsável e humanamente com a gente e com o outro. Temos que refletir sobre esse nosso autoboicote e talvez conseguiremos manter ou terminar o que começamos e nos propusemos a realizar. Pois do contrário, ficaremos sentados no sofá sempre com o conflito interno do “poderia ser” ou “poderia dar certo”, e com o conformismo que “nos protege” da frustração das coisas que podem dar errado no caminho.

Arrisco-me a pensar que mesmo em outra época, Martin Luther King estava passando por essa mesma crise que enfrentamos hoje ao corajosamente escrever:

“É melhor tentar e falhar, que preocupar-se e ver a vida passar. É melhor tentar, ainda que em vão, que sentar-se, fazendo nada até o final. Eu prefiro na chuva caminhar, que em dias frios em casa me esconder. Prefiro ser feliz embora louco, que em conformidade viver”.

Obs:  O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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