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Um homem é surrado tão brutalmente que perde a memória. Incapaz de lembrar-se do próprio nome ou de qualquer outra informação sobre seu passado, ele tem dificuldades para arranjar um emprego ou um apartamento para morar. Então, começa a viver como pode, no submundo da cidade, onde encontrará pessoas como ele, deserdadas da sociedade. O filme “O Homem Sem Passado” de Aki Kaurismäki provoca em nós um estranhamento que nos faz perceber que o outro não precisa ser nosso espelho. Justamente neste ponto está o especial da obra cinematográfica. Afinal, estranhar é começar a entender.
Em João 2, 13 a 22 encontramos uma cena extremamente curiosa. Jesus Cristo possui uma reação agressiva e dirige uma ação de violência contra os vendedores e cambistas que trabalhavam no templo. Esta passagem desmistifica, em primeiro lugar, a figura estereotipada do “Jesus Paz e Amor” e nos faz questionar sobre as situações nas quais o ato violento é muitas vezes necessário. Nós entendemos isso na frase dita por Jesus aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” O que há de mais grave nesta situação? Qual atitude humana faz com que a casa do Pai se transforme em uma casa de comércio? A resposta é a situação mais combatida pela Palavra de Deus, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento: o Narcisismo exagerado. Em primeiro lugar, precisamos compreender que todo ser humano possui um grau sadio de narcisismo. Nós somos narcisistas por natureza, por isso nos achamos belos, gostamos de nosso corpo, nos sentimos orgulhosos de ser o que somos. Ser assim não é nenhuma ofensa a Deus e não retira nossa dignidade de pessoas humanas, pelo contrário, o narcisismo sadio é a garantia de mantermos nossa dignidade e de valorizarmos o dom da vida, presente de Deus. Ter um narcisismo sadio é ter interesse (inter = dentro; esse = ser) por nós mesmos, ou seja, ser centrado em nossa própria pessoa. Um exemplo bem simples de nossa aceitação própria e de nosso interesse por nós mesmos é que não sentimos nojo de nossas próprias fezes, de nosso próprio excremento. O cheiro e a aparência não nos causam repugnância, porque apesar de serem fezes, são as “nossas” fezes. Mas, quando entramos em contato com as fezes do outro não possuímos a mesma postura. As fezes do outro nos causam as piores reações. O narcisismo é importante para o nosso desenvolvimento como pessoa. Isso até certo grau. O problema é quando o narcisismo domina nossas ações de tal forma que deixamos de ter interesse pelo outro como outro, mas temos interesse pelo outro quando este faz parte de nós mesmos ou nos serve para alguma coisa. Este outro pode ser uma pessoa, o mundo e até mesmo Deus. A esposa narcisista supervaloriza seu marido, não porque este é um homem verdadeiramente extraordinário, mas simplesmente porque ele é seu marido. Diante de um divórcio este se transformará no pior homem do mundo. Assim também são os pais narcisistas que supervalorizam seus filhos até o momento que estes deixam de fazer o que eles desejam. Contra este narcisismo exagerado está a Palavra de Deus que nos alerta que não somos o centro do universo, mas que existem outras pessoas que são diferentes, que existe um universo criado por Deus e que Este é um ser também diferente. Por isso, encontramos no Antigo Testamento como mandamentos “amar ao próximo como a ti mesmo” (Lev. 19, 18) ou o “amar o estrangeiro” (Lev. 19, 34). Pela mesma razão, encontramos a fórmula mais radical do combate ao narcisismo no Novo Testamento: “amai os vossos inimigos” (Mt. 5, 44). Amar o próximo, o estrangeiro e principalmente o inimigo é respeitar e se interessar pela vida daquele que nega nossas convicções mais profundas e, portanto, é o ser diferente em si. Este é o mandamento maior, sair de si mesmo, deixar seus interesses e se interessar (entrar no ser) pelo outro como outro. Aqui voltamos à situação contraditória da casa do Pai e da casa de comércio. Na casa do Pai todos são filhos e são amados gratuitamente e incondicionalmente. Na casa do comércio cada um busca seu próprio interesse, o comerciante em lucrar e o comprador em adquirir a mercadoria. Cada um está mergulhado em seus interesses e, se puder, tira vantagens através do outro. Foi justamente esta a situação que Jesus encontrou na casa do Pai. Cambistas e comerciantes aproveitando-se da fé do povo para vender animais para o sacrifício a Deus e o povo querendo comprar o melhor animal para conseguir de Deus os seus objetivos. E todos fazendo de Deus um ídolo a serviço deles. Esta realidade também é encontrada nos dias atuais. Existem Igrejas ou Paróquias que vivem em função delas mesmas. A sua função não é ser uma célula de transformação do mundo, mas tornar-se uma microempresa bem-sucedida. Existem pessoas que se engajam em uma comunidade paroquial buscando status pessoal ou reconhecimento ao invés de semear a Palavra de Deus para que a sociedade se transforme em um espaço fraterno e igualitário. Existem líderes religiosos que se acham simplesmente especiais e maiores que os outros seres humanos, porque são detentores de um poder especial. Se sentem “vacas sagradas” que passam por este mundo porque as pessoas precisam delas e fazem questão de manter a dependência das pessoas em relação a sua. Como também há pessoas que transformam Deus em um ídolo, ou seja, em um ser que o servirá, desde que seja comprado pelo seu dinheiro ou pelo seu sacrifício. Tudo isso é sinal de um narcisismo exagerado do ser humano que transforma o outro, a religião, o universo e o próprio Deus como parte inferior deste ser humano. Esta postura narcisista está presente na política, quando pessoas procuram fazer uma “carreira política” buscando viver do dinheiro do Estado e mantendo seus interesses particulares acima do bem comum. A postura narcisista é encontrada na economia capitalista e nos faz admitir a expressão absurda do “marketing pessoal” que significa se tornar uma mercadoria bem-aceita pelo mercado. Enfim, a postura narcisista transforma o paraíso criado por Deus em um mundo desigual. Jesus exige uma consciência que veja em cada ser humano a humanidade, independentemente de sua inteligência, sexualidade, cor, raça ou convicções políticas e religiosas. Uma “Profissão de Fé” que declare que Deus é o totalmente outro, que possui liberdade de ser e que nos revelou seu amor incondicional por todo ser vivo.