Samuel se arrasta até a entrada e levanta a lamparina de azeite à altura do rosto do forasteiro.
― José!? – admira-se Samuel.
― Shalom, Samuel! Acabo de chegar de Nazaré. Foram quatro dias de viagem.
Volta o braço direito para trás e puxa a mulher para junto de si.
― Esta é Maria.
A moça recolhe os olhos ao chão.
― Carecemos de pouso. Esperamos um filho para esses dias.
Samuel abaixa a lamparina e alisa os cabelos fartos como se apalpasse a mente em busca de palavras para expressar os sentimentos.
― José, perdoa-me. Somos irmãos, mas não posso receber-vos em minha estalagem. Já não me resta nenhum quarto. Tu sabes, nesta semana haverá o recenseamento ordenado pelo Imperador.
José vira o rosto em direção a Maria. Ela se livra do braço do marido. Sente-se decepcionada por tantas portas que não se abrem.
― Podemos ao menos lavar os pés e as mãos, e encher as ânforas? – pergunta José.
― Entrem, diz Samuel. ― Tu conheces a casa.
Enquanto Maria se refaz, os irmãos se acomodam em torno da mesa. Samuel estende uma copa de vinho a José e também se serve.
― José, estamos todos preocupados contigo. Será que só tu ignoras que és motivo de chacota da Galileia à Judeia?
― E por quê? O que há de errado em minha vida?
― Tudo, José. És o único da família que ainda rasteja os pés na pobreza. Não consegues manter-te dignamente com o teu trabalho. Nem sequer possui tua própria oficina.
― Ora, Samuel, tu bem sabes que desde que comecei a ver com olhos críticos os escribas de Belém e os saduceus de Jerusalém, sou tratado como um samaritano.
Os olhos de Samuel chispam em fagulhas.
― És orgulhoso, José! Não vês que, de toda a família, só tu não progrediste?
Enquanto os dois discutem, Maria termina de lavar-se. Sentada a um canto, faz correr os dedos delicados sobre o ventre inchado. As primeiras contrações se anunciam.
― És tão ingênuo, José. Não sabes que és motivo de riso em toda a Judeia? Todos sabem que essa moça traz no seio um filho que não é teu.
José levanta-se ríspido.
― És tão peçonhento quanto a mais perigosa das serpentes, Samuel! Maria e eu fomos agraciados por Javé, que nela gera Seu próprio filho. Um anjo assegurou-nos que assim é.
― Anjo? Ora, anjo! – exclama Samuel animado pelo vinho.
Maria, que se aproxima, cessa o passo ao escutar o tom de escárnio.
― José, se essa criança vier ao mundo nesses dias, que dirás aos recenseadores? Mentirás que és o pai?
Na madrugada de Belém, José e Maria ingressam por um pasto além dos limites da cidade. Maria sente aumentarem as contrações. Julga que é efeito das diatribes de Samuel. José encontra um cocho forrado de palha de trigo. Vacas, carneiros e cabras vagueiam em volta. Com mantas, José cobre o chão e deita Maria. Acende o lume, lava as mãos e ajeita em torno de si uma gamela de madeira e tiras de pano preparadas para a ocasião. Desembrulha do linho uma lâmina de cobre e deixa que o corte seja lambido pela chama do fogo. A mulher geme com as mãos presas ao ventre. O marido não consegue distringuir-lhe as palavras, sem a certeza de que ela sussurra José ou Javé.
Pouco depois, José termina o trabalho de parto. As primeiras luzes da manhã permitem ao casal contemplar a face morena do menino. Maria aperta o bebê em seu seio, que ele suga ávido, enquanto os pezinhos resvalam agitados no ventre da mãe, em busca de apoio. José besunta a mão calosa de azeite e passa suavemente sobre a pele de Jesus.
Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá- los em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato com – MHGPAL – Agência Literária ([email protected])