Nada poderia ser comparada à dor que sentia pela desobediência. Queria assumir a responsabilidade dos seus atos, mas, temia enfrentar as reações da mãe. Só em pensar sentia frio, a pele tornava-se pálida e úmida, os pelos sofriam horripilações e o estômago dava nó. Não podia esconder a situação por mais tempo. Muito ansiosa e indecisa sobre o que fazer, já não possuía força para dominar as manifestações emocionais que afloravam da alma, nem equilíbrio para manter a expressão de serenidade que sempre abrigou. Naquele momento sentia-se condenada à infelicidade. Desesperada, entrou apressadamente no quarto, sem ao menos bater na porta, onde conversavam seu pai e seus dois irmãos mais velhos. Com semblante de dor e desagrado deixou todos assustados e em silêncio. Parecia em fuga de aparição imaginária de coisas sobrenaturais. Substituiu as palavras por choro entrecortado por gemidos e soluções e, com a fala tremida e arrastada aproximou-se do pai e de pronto comunicou a gravidez.

A sinceridade e a doçura de Iracema desarmaram as objeções do pai e dos irmãos. Felismino possuía habilidade ímpar, pensamento rápido e muita confiança em seu modo de agir e mesmo apanhado com as calças nas mãos, logo se refez do susto e abraçou carinhosamente a filha. Tomou sua defesa para protegê-la de olhares e comentários maldosos e recomendou-lhe permanecer recolhida em isolamento social até a solução da grave ofensa. Reuniu-se com Maricota e os filhos e com tom de voz mais alto do que fazia sempre, limitou a ação da família. Utilizou de sua posição hierárquica dentro de casa, exigindo que nenhuma punição deveria ser aplicada, descartando a expulsão da filha do convívio familiar, uma prática tradicional na cidade. Por algum tempo, ficaram sentados, mudos e surdos, olhando uns para os outros, todos sofrendo a mesma tortura psíquica. Maricota com ar de vingança atirou a primeira pedra no esposo: “você esta sendo punido com justiça. Apoderar-se de uma adolescente virgem antes da emissão do alvará de posse pelo padre ou pelo juiz, constitui agressão e humilhação aos princípios cristãos.” Felismino aprendeu a lidar com os problemas no momento que eles surgiam, para não tornar mais difícil e demorada a resolução plena. A violação das regras mordiam sua alma. A filha fora ofendida e a família desonrada. Todas ideias lhe ocorriam. Saiu apressado e depois de alguns instantes batia palmas na casa do genro para chamar quem estava dentro. Não podia recusar ou escolher, a opção era o casamento e com poucas palavras decidiram como tudo devia ser feito.

Demorou algumas semanas, mas, no final de uma tarde de segunda-feira, antes do por do sol, com a Igreja à meia-luz pelo dia nublado, o casamento foi realizado. Naquela época era uma solenidade de união entre pessoas de sexos diferentes. A cerimônia foi muito simples e marcada pelo acanhamento e timidez da noiva e por fisionomias de desprezo de alguns dos presentes. A noiva vestia com simplicidade uma roupa decente bem ajustada ao corpo, contudo, não usava véu nem grinalda. Foi um casamento meia-sola, mesmo assim sobreviveu por seis anos e, dessa união temporária, nasceram quatro meninos e uma menina que faleceu com três meses.

No início, minha mãe levava uma vida aparentemente feliz e glamorosa para os padrões da cidade e logo tornou-se madrinha de umas vinte crianças. A desgraça desabou sobre a casa pouco tempo depois de cumprir o resguardo da última gravidez. O comércio piorava, dia após dia, os negócios e investimentos financeiros nada rendiam e as vitrines da sapataria continham apenas resto de mercadoria que não encontrava comprador. Meu pai, esperto e ambicioso, por meio de empréstimos contraídos sem intenção de pagar, ajuda do sogro e calote nos fornecedores, manteve a loja aberta até quando foi possível. No momento em que a situação tornou-se insustentável, na calada da madrugada partiu de Itabaiana para lugar desconhecido, deixando família, negócios e dívidas. Prometeu à esposa que nunca quebraria o juramento do matrimônio e logo estaria de volta, porque sua dívida maior era com ela e com a criação e educação dos filhos. Derramou lágrimas que não vinham do coração e com aparência triste foi embora. O que sentimos num determinado instante tem menos valor do que aquilo que sentimos continuadamente por longo tempo. Minha mãe não pôde evitar um grande amor nem intensa paixão e esperou, em vão, meio século, cada dia como se fosse o primeiro, sozinha. 21/09/2017

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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