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(Retalhos do Quotidiano)

Para alguém que põe toda sua segurança na religião não é nada difícil iludir-se, alienar-se de si mesmo(a) na esfera do sagrado; aspirações e frustrações são projetadas no mundo dos deuses donde se aguarda consolo e alívio. Não é difícil nem raro fazer dos deuses motivo de refrigério das próprias penas, referir-se ao absoluto-universal para fugir do relativo-particular do quotidiano.

A oração e a chamada “caridade sobrenatural” podem ser tremenda fonte de ilusão. Repete-se e repete-se que “oração é diálogo com Deus”. Ora, a sinceridade humana que se empenha em refletir a nua experiência tem de perceber que se trata de algo mais complexo. Falamos a Deus, é certo, mas só escutamos Sua resposta em palavras que surgem de nós mesmos(as). Daí, o risco de considerar “resposta de Deus” o que nós mesmos(as) respondemos. Deus não se escuta, a não ser na própria voz de quem ora. Ele só responde em nós e justamente por isso corremos o risco do “monólogo”. Muitas vezes o que atribuímos a Deus pode muito bem ser referido a outras causas… Já sabemos desde sempre que as razões da fé não se justificam racionalmente, têm só razoabilidade, podem ser “razoáveis”. Por isso os medievais distinguiam muito bem “rationalitas” (racionalidade) e “rationabilitas” (razoabilidade). Tanto quanto a fé, também o ateísmo é “razoável”. Na experiência humana, há razões e sinais que “ajudam” a crer, mas não “obrigam” a crer, pois não temos provas racionais de que nossa fé tem conteúdo certo. O mesmo se dá com o ateísmo: na experiência humana há igualmente sinais que indicam na direção de que não há Deus, como, por exemplo, o absurdo de tanta coisa neste mundo tido pela fé como bom e querido por Deus. Não há argumento racional conclusivo. Crer ou não crer é decisão da vontade, não “visão” da inteligência, é salto no escuro, é como apostar a vida sem saber se se ganha… “Mistério” é o nome positivo do Absurdo: para quem crê, é o absurdo transfigurado, salvo, “arrancado” de si mesmo.

No Cristianismo, há duas intuições centrais que são profundamente salvíficas, enquanto nos desalienam e nos devolvem a nós mesmos(as), deixando-nos mergulhados(as) na dialética de nossas buscas e perguntas. A primeira intuição nos vem da reflexão de São João, em sua primeira carta: a referência decisiva para abrir-nos ao Mistério da existência é a outra pessoa frente a nós ou a nosso lado; a segunda, é a referência à experiência mística, enquanto experiência da Presença do Absoluto na experiência de sua Ausência. Em outras palavras, temos de aceitar experimentar a Transcendência em nós, não como “algo” fora de nós. O “além de nós” já nos habita, como lemos no 4º Evangelho (cf. Jo 15, 7-10; 17, 21-26).

Por isso, São João nos ensina que não há dois amores, um só é o Amor, pois os dois se identificam, o amor a Deus já se dá no amor ao próximo (cf. 1Jo 3 e 4). Amar a Deus diretamente é ilusão e fuga da realidade, “pois Deus, ninguém jamais viu” (Jo 1, 18), só foi possível tocá-Lo em outro ser humano como nós (cf. Fl 2, 1-11). Deus é Outro, mas de quem não nos é dada experiência direta e imediata. Persistir em alcançá-Lo em Si mesmo é só máscara para permanecer no círculo fechado de si próprio(a), transformando, assim o “mundo religioso” num conteúdo em si e não perceber que é só linguagem e inadequado instrumento para referir-se ao horizonte que só se aproxima enquanto na mesma medida se afasta de nós. Daí, por que o exercício da oração é particularmente perigoso. Oração pode ser muito bem o jeito que achamos para simplesmente adorar nosso eu divinizado, e assim consolar-nos de nossas frustrações ou projetar nossos desejos e sonhos. Dizia o grande poeta francês Charles Péguy: “Tem gente que acha que ama a Deus e a humanidade toda porque nunca foi capaz de amar ninguém”. É o que nos diz igualmente São João: “Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia (não ama ou despreza) seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4, 20). Só quem tem a coragem de se abrir a outrem pode ter segurança suficiente de que, quando se refere a Deus, já não se está fechando em si mesmo(a); já não adora simplesmente a imagem de si refletida no espelho de seu narcisismo. Pois, na verdade, a outra pessoa não é imagem de mim, exige-me sair de mim. Em outras palavras, os outros seres humanos diante de mim, não são apenas outro alvo de amor, um amor que se acrescentasse ao amor a Deus, não, a outra pessoa é a epifania, manifestação de Deus para mim, faz-me viver a experiência de que o amor a Deus não é ilusão, mas relacionamento com outro Real diferente de mim, que me chama, interpela e me julga. Compreendemos, assim, o significado profundo do nome de Deus como “Emanu-el”, “Deus é conosco” (cf. Is 7, 6; Mt 1, 23; Lc 1, 35).

A mística traz sempre de novo a lição de que a fé só atinge a maturidade quando chega a ser “ateia”. Isto quer dizer que a presença de Deus só é experiência humana autêntica (não alienante) quando já não se teme mais experimentar a ausência de Deus e o ser humano se acha remetido a si mesmo, sem se deixar abater pelo sentimento de desespero e de orfandade. Quando se chega a ser “ateu” sem sentimento de orfandade. Na verdade, é muito frequente que se negue a Deus e, no entanto, se permaneça “órfão”, necessitado de preencher Sua ausência com “deuses menores”, que, na verdade, não passam de ídolos. O “ateísmo” maduro, assim como a fé, é o “ateísmo da Ausência”, que faz permanecer em busca de Deus. Em outras palavras, em atitude permanente de perceber a Transcendência nas pessoas e na transcendência do mundo em relação a cada ser individual. Do contrário, nega-se teoricamente Deus, mas, na prática, volta-se a “confissão de fé” para deuses intramundanos, como se se reavivasse reiteradamente radical “nostalgia”: deus será o poder, o dinheiro, a história, o partido, a segurança nacional, os bens, o bem-estar, o consumo, o prestígio, outro ser humano que me prende a si, e tantos outros substitutos ávidos por nos devorar… Só quem permanece na busca de Deus, ou seja, com atenção aos sinais da Transcendência presente em nós, é capaz de ser tranquilamente “ateu”, sem nostalgia ou sentimento de orfandade, pois o horizonte que buscamos já se revela em nós. Por isso, negam-se todas as divindades, porque nada é Deus, caem os ídolos; este é um capítulo importante da reflexão teológica, chamada “Teologia Negativa”, nada é Deus, pois “Deus é sempre maior” (“Deus semper major”). É verdade que sempre necessitamos de “imagens”, de religiões, de doutrinas, de cultos, de instituições “sagradas”… mas, continuamente, temos de construí-las e destruí-las porque “Deus semper major”, são apenas pobres e miseráveis muletas para a caminhada.

Ser pessoa de fé é chegar a experimentar a Ausência sem sentir a impelente e irrefreável necessidade de cobrir a Ausência com “deuses menores”, é quem chega a estar seguro de que a Transcendência é real em nós, na medida em que vai operando o milagre de fazer-nos transcender tudo que é relativo e caduco e fixar-nos nos valores que nos dão sentimento do “essencial” e de eternidade, o primeiro dos quais é o amor e tudo o que nos faz viver em maior plenitude. Ser realmente crente é aceitar viver sem deuses e estar certo(a) de que “é conosco”, na medida em que nos faz “ser conosco”, isto é, comigo mesmo(a) e “com nós”. É que só dessa maneira se torna possível experimentar a grande Ausência como a grande Presença. Parafraseando Enest Bloch, famoso marxista alemão, já falecido, “só o crente pode ser um bom ateu, só um ateu pode ser um verdadeiro crente”. Isto porque pode estar pronto a aceitar, com confiança e paz, sentir-se devolvido a si mesmo(a) e aos demais seres, sem necessidade de fazer “confissão de não fé” e, desse modo, viver sem deuses em busca do Deus vivo.(Recife, 16. Abril, 1974)

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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