(para Lúcio Cardoso – 1912/1968)

Travo uma briga antiga
com a minha dor.
Ela teima em querer ser
maior que a dos outros.

Para isso,
mantenho nos bolsos laterais
duas palavrinhas démodé:
piedade e compaixão.

Não tenho o direito
de desprezar
a dor dos outros,
por mais que a minha grite.

Talvez, por isso,
sustento esse sorriso esmagado, meia-boca,
enquanto queria o riso cruel e consciente
dos que não estão nem aí pro dia do juízo final.
Quiçá, dos loucos, os livres que ainda há.

Os homens são tolos e pretensiosos.
Minha pequena vingança
contra Deus é essa:
Ele nunca há de se gabar
da sua grandeza
com essa criação tão sórdida.

Sou um velho dominado pela sugestão
como a sombra, o sonho ou a memória.
Sempre embriagado
nas coisas fluidas, imponderáveis,
que tanto me roçam sem me tocar.

Ninguém me tirou nada,
eu é que tudo reneguei.
Cuspi os tesouros possuídos,
bens tão prezados pelos homens
mas que nunca preencheram
esse vazio em mim.

Porque os objetos nada valem,
esses inúteis e desapiedados
testemunhos da nossa agonia mesma.

E o mais terrível
é termos nos escravizado
a pensamentos que demarcam
apenas um mundo estéril.

Pois, tudo passa
e nada e nem ninguém vale
a manutenção de um ódio
ou de uma promessa.

Eis-nos,
de lábios travados,
de corações batendo sem alma,
mofados num mundo de tédio,
sono e odiosa quietude.
Essa trinca tóxica
que nos torna cidadãos
da apatia e da falta de finalidade.

Espantalhos ermos
uns, com rostos de tédio ou de ódio,
outros, de cobiça,
alguns, de insatisfação,
tantos, de orgulho,
incontáveis, de fantasia
e milhões, de vaidade.
Revelando nas faces
toda essa nossa insana natureza.

Não há esquecimento
e nunca encontrei um maldito sábio
que dissesse ser isto
salvação ou perdição.

Parece que há,
dentro da gente,
um outro serzinho
que guarda os terrores
e nossas desgraças,
tudo o que queremos órfãos.

Quando agitados,
momentaneamente,
esquecemos tudo isso
e nos sentimos best of the best.
Mas a besta insidiosa,
a lembrança,
feito uma neblina invisível,
sempre acorda da sua hibernação
para nos devorar.

Assim,
com dificuldade,
vamos aprendendo
a esconder nossos sentimentos,
a fim de que o outro
nos explore apenas o mínimo.

E acabamos todos fantasmas
procurando estabelecer
uma realidade proibida.

E quando nos esbarramos,
não é a alma do outro que buscamos,
mas o seu corpo,
o seu cheiro,
sua carne selvagem
para nos esquecermos
de tudo o que existe e sintamos,
mesmo que momentaneamente,
o equilíbrio que perdemos.

De resto,
seguimos mentirosos verdadeiros
porque sempre traídos pela alma,
pelas cicatrizes e fendas
cavadas pelo tempo.

Mas cumprindo o pacto
e nunca lendo
essas verdades tão nuas
estampadas em cada um.

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http://lounge.obviousmag.org/espantalho_lirico/

Obs: Imagem enviada pelo autor: (ilustra: http://rascunho.com.br/autor/fabio-silvestre-cardoso/page/2/)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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