(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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A sociedade do descarte e da obsolescência rápida, das relações a um clique de distância, dos compromissos efêmeros valoriza muito o novo.  Cansou do vestido?  Compra um novo.  Do sapato? Idem.  Saiu um novo modelo de celular?  Compra.  Não importa se o outro de um ano atrás ainda funciona perfeitamente.  O importante é ter o último, o mais novo, o de agora há poucos minutos.  Novo é sinônimo de imediatez, de avidez aquisitiva.  E funciona em tudo:  relações afetivas, objetos etc.

Aproximamo-nos agora, dentro de uns dias, de um ano novo.  Será que o entendemos dentro desta chave imediatista e descartável?  O que é a celebração de Ano Novo?  Por que é tão importante, por que a festejamos com fogos de artifício?  E, se o Natal é uma festa com origens claras no Cristianismo, o Ano Novo toca em todas as religiões.  Trata-se de uma comemoração universal. No Brasil, as religiões afrobrasileiras homenageiam Iemanjá, rainha das águas, e muitos cristãos se unem a essa comemoração realizando rituais com velas e pulando as ondas que chegam à beira da areia.

O ano novo que celebramos – cuja festa também pode ser chamada ano bom – faz parte do calendário gregoriano que adotamos, herdeiro do calendário romano.  Neste,  o ano novo começava em 1º de janeiro e era dedicado a Jano, o deus dos portões, divindade bifronte, com duas faces: uma voltada para a frente, visualizando o futuro; a outra voltada para trás, olhando para o passado. Nessa fronteira entre o passado e o futuro, os romanos viram uma forma adequada de delimitar o momento entre o fim de um ano (passado) e o começo de outro (futuro).  Júlio Cesar, imperador romano, proclamou o decreto que fixa o dia 1º de janeiro como dia do ano novo. Daí o nome do mês.

     Os romanos eram um povo politeísta e adoravam muitos deuses, entre os quais Jano e o próprio imperador, considerado divino.  Muitos cristãos foram martirizados por se recusarem a prestar culto ao imperador, proclamado como um deus pela cultura romana. Aqueles que adoravam o Deus Pai de Jesus Cristo e proclamavam sua divindade eram chamados de ateus e por isso martirizados.

    Não se tem notícia de que o povo judeu, monoteísta, assim como a comunidade cristã primitiva, tenha comemorado o ano novo.  Tratava-se, pois, de uma festa fundamentalmente pagã. O Ano Novo judaico não acontece na mesma data que o nosso, situado, segundo o calendário gregoriano, entre 31 de dezembro e 1º de janeiro. É uma festa religiosa, diferente da que celebramos na praia ou com fogos de artifício.

O calendário gregoriano seguiu a expansão da cultura ocidental e foi adotado oficialmente em diversos países.  Assim, o  ano novo é comemorado a 1º de janeiro mesmo em países com suas próprias celebrações em outros dias, como em Israel e na China, por exemplo.

 O que importa, no entanto, na virada do ano que se aproxima é estarmos conscientes do que representa o novo no nosso imaginário.  Se nos movemos pela chave consumista, o novo é apenas a substituição do já adquirido, do já possuído, do já utilizado, por algo ainda não conhecido, que traz a excitação da descoberta.  Porém, logo esse novo cairá no esquecimento ou ficará num canto,  desprezado e sem utilidade.  Assim pode acontecer com o ano novo e, sobretudo, com os propósitos e resoluções que nesta época do ano em geral fazemos.  Duram apenas um mês ou quem sabe menos.

No entanto, para os que cremos que com Jesus Cristo a absoluta novidade de Deus entrou definitivamente na história, tudo é permanentemente novo, porque renovado pelo Espírito que faz novas todas as coisas.  E, nesse sentido, a categoria do tempo está para sempre alterada. Para aquele ou aquela em quem o Espírito Santo habita, o tempo não é mais um tempo linear (kronos), mas um kairós (tempo de Deus), que só encontra em Deus sua unidade de medida.  Não se trata mais de um tempo submetido à caducidade.

         E se é assim, as coisas não podem mais ser medidas pelos parâmetros temporais de antes. Tampouco podem ter seu valor efemerizado por uma mentalidade consumista e predatória de valores.  Não apenas esperamos um novo céu e uma nova terra,  mas já  vivemos de fato uma nova ordem de coisas, uma nova criação.  E embora este novo esteja ainda sendo dolorosamente “parido” em meio a um mundo que parece insistir no desamor, na violência e na injustiça, na verdade já  está  acontecendo plenamente para aqueles que vivem em Cristo.  Para estes e estas,  chegou a plenitude dos tempos.  É o Espírito que realiza e atesta este novo, as coisas tornadas novas, fazendo de todos novas criaturas, crianças novas, ainda que o homem exterior envelheça e esteja submetido à erosão do tempo.

         Que venha, portanto, o Ano Novo.  Estamos dispostos a saudá-lo alegremente junto com todos os irmãos e irmãs, que através de toda a terra neste momento esperam um tempo melhor, uma vida melhor, um novo estado de coisas para suas vidas e as vidas daqueles e daquelas que amam. Que venha!  Mas que além de Novo seja Bom, como em português também se diz.

        Que a novidade do ano que vem seja atravessada pela bondade, intrínseca à justiça, à paz, ao amor, enfim.   Desejar Feliz Ano Novo tem de ser equivalente a desejar Feliz Ano Bom. É o que esperamos e desejamos uns aos outros nesta virada que ansiamos seja boa.

Obs: A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo – Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected] 

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