A vida é cheia de situações inimagináveis. A alguns acontecimentos vale a pena recordar e divulgar, outros, devido à perturbação causada, nunca deveriam vir à tona. A malvadeza do dia de finados, espontânea e inocente poderia permanecer guardada dentro de cada um de nós, na época adolescentes de rua, de escola, de missas, e de cinemas, todos cúmplices de brincadeiras artesanais. Dentro de nós havia motivação para criar e executar, sem treinamento prévio, com perfeição, incontáveis ideias. No entanto, não tínhamos maturidade adequada para avaliar e compreender o verdadeiro significado na comunidade, resultante de uma agressão aos sentimentos familiares e religiosos de proteger e cultuar restos mortais. A escola modelava os jovens para a sobrevivência e as coisas boas da terra, já a igreja nos preparava para a vida eterna no céu. Ciência ou superstição? A mistura desproporcional é uma praga a entorpecer a busca de conhecimentos essenciais à vida, levando muitos adolescentes abdicarem de seus objetivos pessoais em pró da pratica religiosa. Alguns “meninos que não queriam ser padres” adquiriram autonomia e libertaram-se, em tempo hábil, de superstições, delírios, fantasias, alucinações, e retornaram a uma vida real.

A reconstituição da brincadeira espirituosa e sagaz, foi marcada por pequena divergência em relação à data. Sempre acreditei no dia primeiro de novembro de 1962, no entanto, Dr Vladimir, convocou suas recordações do passado distante e com a mesma certeza que costuma afirmar não ser possível bater palmas com uma mão só, assegurou-me, com grau exagerado de precisão, tudo ter ocorrido em 1963. Por conhecer sua capacidade de relembrar, mobilizar, trazer de volta e integrar no tempo e no ambiente as coisas de Itabaiana, deletei meu equívoco. Na verdade nada lhe escapa da mente e tudo que aflora da sua memória remota pode ser utilizado em qualquer situação. Seu cérebro é mais exato do que o sistema de datação do carbono 14.

Vamos à reconstituição: final de tarde, após a última aula, o por do sol ainda a concluir sua passagem diária pela cidade, deixamos o Ginásio Murilo Braga em direção à Praça da Igreja. Ainda fazia muito calor e caminhamos por calçadas protegidas da luz do sol. Era véspera de feriado e a praça tornava-se um lugar badalado e cheio de moiçolas charmosas. Aguardávamos ansiosos o anoitecer, quando nossos olhos, dissimulados e maliciosos, perseguiam as mocinhas belas, sem elas perceberem ou suspeitarem, da nossa ambição pelo bem mais precioso que escondiam por trás das roupas e que despertavam emoções fortes e reboliços em nosso corpo. A natureza vai sempre vencer.

O caminho a ser percorrido para chegar até a Praça da Igreja era considerado longo e naquela tarde, sem nenhum objetivo, o trajeto costumeiro foi modificado. Já passava das 16 horas quando deparamos, cara a cara, nas proximidades do cemitério de Santas Almas, com um grupo de mulheres que, a primeira vista, exibiam características de terem participado de uma grande faxina: roupas empobrecidas e sujas, toalha no pescoço para enxugar o suor, cheiro de sovaco e nas mãos vassouras, lata d’água, esfregões e gadanhos. A curiosidade despertada pela cena passou a guiar meu corpo, mas, o portão colonial do cemitério já havia sido cerrado. O amanhã é desconhecido e sempre desejei viver a adolescência ao máximo, livre de estímulos bloqueadores e de vínculos desnecessários com o passado. Não era possível viver a vida inteira na sombra dos pais e dos professores. Jamais passou na minha cabeça que a vida na terra fosse apenas uma preparação para a vida no céu ou no inferno, como aprendemos com nossos ancestrais. Queria ser feliz sem amarras: amar as jovens sobre todas as coisas; desejar as mulheres belas, solteiras ou casadas, e buscar prazer para o corpo e a alma a todo instante. Com autoestima elevada e grande agilidade, pulei o muro do cemitério e num piscar de olhos fui rodeado por Vladimir, Zé Valdi e Verinaldo.

Estávamos no interior de um lugar cheio de segredos e de assombrações. Assustava ao coração o silêncio profundo dos mortos, vez por outra, interrompido pelo uivar longínquo dos ventos ou pelo cantar agourento das corujas. Venerado pela comunidade, em seu solo realizava-se o enterramento dos mortos para remoção posterior das almas por Deuses, Demônios ou Feiticeiros. O ambiente induzia as crianças pelarem-se de medo e nunca foi escolhido para entretenimento, no entanto, a vontade de curtir todos os momentos, nos levou a transformar o cemitério num parque de diversão improvisado. Do portão para dentro, nenhum detalhe era obra do acaso. Percorremos o cemitério de um lado para outro em todas as direções e sentidos. Tudo estava mais bem arrumado do que bicicleta de pedreiro ou árvore de Natal. Os túmulos impecáveis com jarros novos, flores vivas de odor agradável e galhos secos aparados. Em cada cova a cruz fazia a identificação do defunto: nome, datas de nascimento e falecimento. Algumas enfeitadas com terços de madeira, escapulários, medalhas, fitas coloridas, vestígios de coroa de flores, velas, santinhos e fotos envolvidos por plástico transparente.

Na infância fomos estimulados a sentir sensações irracionais de perigo diante de escuridão, relâmpago, trovão e cemitério. Entretanto, meio indiferentes ao aprendizado, passeávamos, lado a lado, no lugar onde dormiam almas penadas maldosas e perversas, esperando os vivos intercederem por elas com seis Padre- Nossos, seis Ave-Marias e seis Glorioso Padre, para Deus amenizar a temperatura do castigo a que estavam submetidas. Inesperadamente, uma voz rouca, suave, baixa e não reconhecida, mas, provável ser de uma alma penada, invadiu meus ouvidos e ordenou-me “trocar as cruzes das covas rasas”. Jamais tinha enfrentado situação tão estranha. Sem poder fugir da possessão, senti-me completamente apeado. Um comando instalado no meu cérebro reduziu minha capacidade de compreender as coisas que ocorriam. Meus pensamentos e ideias foram roubados e assumi a personalidade da invasora, mas, não fui possuído sozinho. Em dez minutos, oito mãos, de forma aleatória, trocaram a identidade de inúmeras covas.

No dia seguinte, a população da cidade reunia-se no cemitério para rezar por parentes, amigos e pessoas destacadas da cidade ali enterradas. Era uma forma de manifestar saudade, respeito, e carinho pelos que partiram. A visita devia ser realizada e conduzida de forma lógica e racional, por ser a morte universal, inevitável e irreversível. Alguns deixavam transparecer na face a grandeza da homenagem que vinha do coração. Não estávamos ali a procura de vida eterna nem de ressureição dos mortos, mas, para sentir as consequências da nossa maldade. Concluímos que o finados do dia 2 de novembro de 1963, foi diferente. As pessoas não encontraram seus mortos no lugar onde haviam sido enterrados. Tornaram-se agitadas, se movimentavam de um lado para outro, de modo desordenado, falavam aos gritos e quase todas ao mesmo tempo. A cada instante a inquietação e o barulho tornavam-se mais intensos. Miguel Fagundes e Zé de Birro, fortes e grosseiros, assumiam a defesa dos mais fracos e exigiam do pároco a localização dos túmulos. O padre, vestido de preto e roxo, agitava o sino aumentando o barulho e a confusão. A missa foi suspensa. O sacristão e o coveiro garantiram que não houve saques ou destruição de túmulos e que, a curto prazo, tudo seria resolvido, porque a Igreja tinha uma planilha com a localização de todos os mortos ali enterrados.

O alvoroço não me causou sentimento de culpa ou remorso. Meu código de barra é o DNA do criador que nos fez à sua imagem e semelhança. Gandhi, Irmã Dulce e Chico do Cantagalo nasceram puros e viveram sem nódoas porque resultaram de mutações. Aracaju, 22/11/2017

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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