(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Há alguns dias li esta frase e pareceu-me haver sido pronunciada por Francisco: optar pelos pobres é compartilhar impotências. Agora, procurando para escrever este artigo, não encontro mais a fonte para confirmá-la. Isso não me preocupa, pois se não é dele, poderia ser. Este que instituiu o Dia Mundial dos Pobres parece conhecer bem sua impotência em melhorar a sorte daqueles que são golpeados pela pobreza e a indigência. Escolhe, então, partilhar com eles sua própria impotência atravessada pelo amor.
No Dia Mundial dos Pobres, o Papa quer proclamar o valor salvífico dos pobres ao mesmo tempo em que denunciar a indiferença com relação a eles. Quer chamar a atenção de todos aqueles que se dizem discípulos de Jesus para a centralidade do pobre no anúncio evangélico e para a identificação do Senhor com esses irmãos menores e mais pequeninos. E quer denunciar a sociedade atual que os exclui e oprime.
Muitos se perguntam: por que um dia dos pobres? Não deveria ser todo dia? É fato que todos os dias deveríamos prestar especial atenção aos mais vulneráveis e necessitados. Mas instituir um dia para se valorizar o pobre, mentalizar sua importância e seu lugar privilegiado no plano da salvação significa provocar e convocar mentes e corações de todos para a inaceitável realidade da pobreza, que é fruto da injustiça humana e não da vontade de Deus.
No dia marcado para essa “celebração” dos pobres – no último domingo, 19 de novembro – Francisco celebrou com eles uma Eucaristia e ofereceu-lhes um grande almoço, do qual participou. Assim, pôs em prática um dos elementos característicos de sua espiritualidade: não basta dar coisas ou esmolas distantes e longínquas aos pobres. É preciso estar com eles, próximo a eles, partilhando com eles o pão da palavra, o pão eucarístico e também o pão material do qual carecem. Importa conversar com eles, escutá-los e deixar-se ensinar por esses mestres que a vida formou duramente e que têm imensa sabedoria para partilhar conosco, enriquecendo-nos com dons inimagináveis.
Pronunciou também uma homilia na qual destacou a configuração de responsabilidade do amor de Deus para conosco. O amor de Deus nos cumula de dons e talentos. Mas nos responsabiliza por eles. E a maior desde sempre é a responsabilidade pelo outro, pelo irmão. Não à toa, a Bíblia começa com o relato de Caim e Abel. Diante do assassinato do irmão, interpelado por Deus: “Onde está teu irmão?” Caim responde:” Por acaso sou o guarda do meu irmão?”
É contra essa mentalidade que Francisco institui o Dia dos Pobres. Deseja conscientizar-nos de que somos sim, guardiões do irmão, responsáveis pelo irmão e sua vida. Se o irmão não puder viver plenamente ou dignamente, somos responsáveis. Não podemos dizer que nada temos a ver com isso, que não nos diz respeito. Todos estamos implicados nesse sistema iníquo que enriquece desmesuradamente alguns às custas da multiplicação desenfreada de pobres, miseráveis, famintos, refugiados e todas as deformações que desfiguram a humanidade.
Francisco deseja conscientizar-nos de que “os pobres não são um problema: são um recurso para acolhermos e vivermos a essência do Evangelho.” São abertura privilegiada e segura de nosso caminho para Deus. Partilham conosco a fome de Deus e o desejo de ser alimentados pelo pão da vida. Porque “dele precisamos todos nós, ninguém é excluído, porque todos somos mendigos do essencial, do amor de Deus, que nos dá o sentido da vida e uma vida sem fim.” Portanto, reconhecendo-nos pobres com os pobres, aproximamo-nos sempre mais do Deus da vida, que se fez pobre para enriquecer-nos com seus dons.
Na homilia da Eucaristia celebrada no último domingo, ao comentar o Evangelho dos talentos, Francisco falou sobre o pecado de omissão, tão presente em nossa sociedade. A três servos foram dados talentos, moedas. Dois os multiplicaram e fizeram frutificar em benefício dos outros. Um enterrou seu talento e se omitiu. Deixou de fazer o mal. Mas deixou igualmente de fazer o bem.
Neste momento, Francisco chamou a atenção para uma desculpa que é constante em nosso pecado de indiferença. Não faço mal a ninguém, não roubo, não mato, não é por minha culpa que os pobres não têm como viver. Devo cuidar dos meus e que cada um faça o mesmo. Não basta não fazer mal. É preciso amar e fazer o bem aos que amamos e aos que Deus ama com predileção: seus filhos mais necessitados. Somos responsáveis por eles e elas. Somos seus guardiões. A eles devemos nossa atenção, carinho, serviço. E não menos a eficiência de nosso agir em seu favor.
O servo fiel da parábola é aquele que tudo arriscou para multiplicar seus talentos e fazer acontecer a fecundidade do amor. Só descuidou do seu próprio interesse, sendo esta a única omissão válida, lembra Francisco. O amor não deve pôr-se somente em palavras, mas visibilizar-se em atos e obras. Assim lembra a 1ª Carta de João; assim ensina Santo Inácio de Loyola, mestre de Francisco, na Contemplação para alcançar amor, último de seus Exercícios Espirituais; assim relembra Francisco ao instituir e celebrar o Dia Mundial dos pobres.
Obs: A teóloga é autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.
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