O Natal se aproxima. Com ele, a ansiosa preocupação com a lista de presentes. Em muitos círculos familiares e corporativos se torna quase uma obrigação dar presentes, até mesmo para quem não se conhece ou se nutre antipatia. Há inclusive quem dá presente para não se fazer presente.
Presente compulsório amarga o Natal. É pagar pedágio para prosseguir na estrada da indiferença. E “amigo oculto” é uma loteria de afetos. Oculto é, por vezes, o desafeto que se tem para com o sorteado.
Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente seu caráter religioso. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, que simboliza o fetiche da mercadoria.
O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista nos afasta da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite, reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite, driblando a madrugada que favorece a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes parecem falar mais alto que os bons e velhos costumes: a oração em família, os cânticos litúrgicos, as narrativas bíblicas e a memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judeia.
O Natal nasceu como uma festa religiosa. É a apropriação cristã de ritos pagãos de celebração da mudança de ciclos da natureza. Marca a comemoração do nascimento de Jesus, cuja data exata se desconhece. Porém, fatores meteorológicos conveniaram a data de 25 de dezembro.
A tradição de troca de presentes é atribuída a vários santos que teriam o hábito de distribuir presentes às crianças pobres: são Nicolau, são Basílio de Cesareia etc. Hoje, poucos se lembram dos excluídos na festa de Natal.
São Francisco de Assis criou, no século XIII, o presépio. O nascimento de uma criança em um curral, filha de uma família sem teto, virou um bucólico cenário que encobre o fato histórico – José e Maria, rejeitados em Belém, ocuparam uma cocheira premidos pela proximidade do parto.
Em uma Comunidade Eclesial de Base da periferia de São Paulo, a leitura do relato evangélico levou dona Lídia ao seguinte comentário: “No dia seguinte, o jornal ‘Diário de Belém’ deu a notícia: família de sem teto invade sítio nas proximidades da cidade.”
Hoje a festa religiosa é ofuscada pela figura lendária de Papai Noel. O velho gorducho foi popularizado, a partir de 1822, pelo poema “Uma visita de São Nicolau”, que Clemente Clark Moore escreveu, em Nova York, para seus filhos. Os trajes e o gorro eram verdes. Em 1863, o cartunista Thomas Nast, da “Harper’s Weeklys”, o desenhou em traje vermelho, incorporado, a partir do início do século XX, à propaganda de bebidas não alcoólicas, como a Coca-Cola.
O sentido cristão do Natal é escanteado pela apropriação consumista de Papai Noel. A presença cede lugar ao presente; a Missa do Galo à mesa na qual impera o peru; a oração ao espocar das rolhas etílicas.
Na boca do coração, o gosto de mel se transubstancia em fel quando a festa se resume a desatar fitas coloridas, abrir presentes e se empanturrar de comidas e bebidas. De algum modo sabemos que sonegamos o significado mais profundo da festa.
O que sucedeu em Belém supera todas as expectativas: Deus irrompeu na história humana! Não veio como um Messias triunfante cercado pelo cortejo de anjos. Entrou pela porta dos fundos.
Filho de um remediado carpinteiro e uma pobre camponesa, o Menino logo se irmanou às gerações de refugiados ao se exilar no Egito para escapar à sanha repressiva do rei Herodes.
Toda a vida de Jesus consistiu em semear as bases de um novo projeto civilizatório que se resume, nas relações pessoais, à predominância do amor e da compaixão; e nas relações sociais, à partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Esta a proposta do Reino de Deus, oposto ao de César.
Tal ousadia subversiva resultou-lhe em prisão, tortura e morte na cruz. No entanto, sua ressurreição atesta que a vida supera a morte. É essa esperança que nos move para que, um dia, a paz prevaleça como fruto da justiça.
Celebrar o Natal é, portanto, partilhar com outras pessoas, em especial as necessitadas, nossos talentos, aptidões, recursos e bens, para que vivam com dignidade. É ousar fazer nascer o novo nessa velha ordem social marcada pelo preconceito e pela exclusão.
Obs: Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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