(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Aprende-se desde que se abre os olhos para a vida que a única certeza para os seres humanos é a morte.  No fundo, isso é o que nos diferencia de todos os outros seres da criação.  Todos morrem. Os seres vivos nascem, crescem e morrem.  O ser humano, porém, entre todos, é o único que sabe que vai morrer.  E por isso passa seu tempo e seus dias em busca de um sentido para esta vida que desejaria interminável e para sempre, mas que vai acabar, mais cedo ou mais tarde.

Por isso, a ciência pesquisa e se debruça incansavelmente sobre os vírus, germes e desordens corporais, buscando meios de cura de todas as doenças: as antigas e as novas. É grande o avanço feito, não só para a cura de enfermidades antes consideradas fatais, como também na prevenção de doenças.  Os aparelhos de última geração realizam exames profundos e acurados, que detectam doenças ainda no estágio bem inicial, aumentando as probabilidades de tratamento e cura.

Infelizmente esses avanços da medicina não chegam a muitos, senão a todos os hospitais públicos brasileiros. Ou porque não dispõem de modernos e precisos aparelhos, ou porque os mesmos estão enguiçados.

Isso transforma a vida dos doentes e suas famílias em um calvário de incertezas e sofrimento por não conseguirem sequer um diagnóstico  e não saberem o tratamento a ser seguido. A morte muitas vezes chega antes do que a técnica e a torna inútil.

Assim aconteceu com pessoas de minha relação em um hospital público da região serrana fluminense. Omito os nomes por respeito a eles e a sua dor tão recente.   O doente era um homem de cinquenta e alguns anos, forte e aparentemente sempre saudável.  Trabalhava em oficina onde lidava muito com tinta, e o fazia sem a proteção de uma máscara.

Provavelmente a inspiração da tinta danificou seu pulmão.  Um dia sentiu-se muito mal e teve que ser internado. Mas os sintomas que o fizeram chegar à internação poderiam igualmente ser cardíacos.  O fato é que não se conseguia chegar ao diagnóstico e, portanto, ao tratamento.  Os dois aparelhos de ressonância magnética do hospital não funcionavam.  Havia requerimentos empilhados na mesa da prefeitura sem que o conserto fosse providenciado. O estado do doente piorava dia a dia, até que os médicos o sedaram e o entubaram, enquanto aguardavam  o momento de poderem fazer o exame.

Ainda assim o estado dele piorou e decidiu-se que deveria ser transferido urgentemente para outro hospital da cidade.  Porém, já muito fragilizado não poderia ir em ambulância comum, era necessário uma UTI móvel.  Duas vieram, duas voltaram; os monitores de ambas estavam enguiçados. Sem recursos para buscar um atendimento particular, a família, os amigos e a comunidade eclesial faziam corrente de oração e perdiam horas nas filas de atendimento dos órgãos públicos.

Enquanto se buscava uma terceira ambulância que funcionasse, o paciente morreu.  Sua esposa e filhos, extremamente abalados pela brutalidade e celeridade do processo, atordoados, se perguntavam sobre o que afinal tinha causado a morte dele.  Não se sabia.  Com os aparelhos quebrados, os médicos não conseguiram precisar um diagnóstico. Havia apenas suspeitas.  Suspeita de tumor, de cardiopatia, de pneumonia.  E de suspeita em suspeita, sem que nada pudesse ser comprovado, a morte se antecipou e invalidou todos os esforços e expectativas.

A impotência diante da morte que poderia talvez ter sido evitada se houvesse o acesso ao tratamento adequado nos faz voltar às perplexidades que instigaram o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, nos anos 1970. Como pode os pobres não gozarem dos direitos mais elementares, entre eles o direito à vida? Como pode uma parcela significativa da humanidade ser ignorada como se não contasse, não fosse um sujeito e um cidadão?

Infelizmente, isso é o que ocorre em várias partes do mundo, inclusive em nosso país. Tantos decênios e mesmo séculos após a revolução industrial, em plena pós-modernidade, o pobre continua a ser o insignificante, a não pessoa, aquele que não tem direito a ter direitos. E as instâncias que têm por missão atendê-lo, servi-lo, garantir sua vida, sua saúde, seu bem-estar encontram-se em total estado de carência e vulnerabilidade. Sem aparelhos, sem ambulâncias adequadas, sem instrumental cirúrgico, para que serve um hospital?  Para ser um campo de concentração de agonizantes, que gemem e sofrem sem esperança de melhora?

A pobreza é algo contra a vida, é morte prematura e injusta, morte física e cultural, afirmou Gustavo Gutierrez, pai da Teologia da Libertação.  A suas palavras acrescenta o Pe. Peter Hans Kolvenbach, filólogo holandês, ex superior geral dos jesuítas: “A pobreza no mundo é um fracasso da criação”. Este fracasso não é espontâneo, mas fabricado.  Gerado pela injustiça, carcome a criação por dentro, atrasando a vida em plenitude que Deus deseja para todos e retardando o momento quando Deus será tudo em todos e não haverá mais pranto nem tristeza. A saúde pública no Brasil infelizmente é um exemplo sombrio desse atraso.

Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)

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