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Entre 29 de Setembro e 19 de Outubro estive viajando e revendo lindas paisagens italianas e, sobretudo, revendo amigos e amigas e conhecendo gente nova. O convite para a viagem veio de uma rede de grupos situados em diversas cidades e que se dedicam à Leitura Popular da Bíblia, método de leitura recebido da experiência do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos – ecumênico), do Brasil. Comemoravam o jubileu de prata da experiência e gostariam de celebrar tão significativa data com um encontro de estudos que reunisse representantes dos vários grupos. Veio-lhes também a ideia de convidar algumas pessoas do Brasil que, durante a caminhada, de uma forma ou de outra, tinham fraternalmente ajudado a conhecer e a aprofundar e exercitar a prática do método.

Daqui estávamos Sandro Galazzi, italiano de nascimento, mas há muitos anos radicado no Brasil, importante biblista identificado com o método da Leitura Popular. Também Tea Frigerio, italiana, há muitos anos, porém, residente na Amazônia, em Belém do Pará, conhecida biblista do CEBI,  formadora de gerações de agentes pastorais católicos romanos. Ainda Maria Soave Buscemi, leiga italiana, missionária no Brasil, por muitos anos em Santa Catarina, hoje fazendo ponte entre nossa Igreja do Brasil e o CUM (Centro Unitário Missionário), patrocinado pela Conferência Episcopal Italiana, com sede em Verona, no norte do país. Mais uma convidada, pastora luterana, não pôde estar presente. Para completar o time, estava também eu. A razão dos convites era que este grupo do Brasil já tinha estado em contacto com grupos da Itália, em algum momento, para partilhar experiências da Leitura Popular da Bíblia. Claro que outras pessoas, como nossos queridos Carlos Mesters e Marcelo Barros, por exemplo, já tinham estado também por lá. No meu caso, já tinha tido contacto com a experiência, junto com minha mulher Madalena e a amiga Tea, num saudoso e proveitoso encontro realizado no ano 2000, logo depois de minha sagração a bispo da Diocese Anglicana de Pelotas, RS. Naquele ano chegamos até a Sardenha.

O encontro, de celebração e estudo, para comemorar os 25 anos, aconteceu na sede do CUM, organizado por membros de grupos e com respaldo do Centro Missionário, hoje dirigido pelo Padre Félix Tenero que já trabalhou no Nordeste do Brasil, particularmente na Paraíba e na diocese de Floresta, sertão de Pernambuco. O edifício do CUM era para nós um símbolo muito eloquente. Com o Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII fizera um apelo à Igreja italiana no sentido de ajudar a missão em nosso continente. Para o papa, éramos uma Igreja viva e que apontava para o futuro, mas ainda carente de meios e de agentes missionários(as). Nasceu assim, o ”Movimento Leigos para América Latina” e o “Seminário para América Latina”, para preparar padres para a missão, ambos com sede em Verona e vizinhos um do outro. Foi um tempo de muito entusiasmo, tivemos entre nós, nas dioceses, pessoas extremamente devotadas à causa do Reino e aos pobres. Gente casada, por exemplo, que teve coragem de deixar tudo lá e vir pra cá, inclusive com crianças, algumas até ainda pequenas. E muitas dessas pessoas, padres e leigos(as), ao virem para cá descobriram novos caminhos e novas ideias que, ao voltarem depois para sua pátria, levaram como fermento de renovação para a Igreja de lá. Foi encontro de mão dupla, quem veio, além de oferecer, também descobriu novos horizontes, ajudou e saiu ajudado, realmente um encontro de Igrejas irmãs. Por uma ou duas vezes assessorei aqui no Brasil o “Encontro de Italianos(as)” – de uma das vezes lembro-me vivamente, em Itapuã, Salvador. Naqueles tempos era biblista leigo, a trabalhar no ITER (Instituto de Teologia do Recife).

Esteve entre nós, no Encontro de Verona um mui simpático grupo da Igreja Luterana da Suécia. Lá também há a experiência da Leitura Popular da Bíblia, experiência partilhada há anos atrás pelo CEBI do Brasil. Eram um pastor e uma pastora, duas seminaristas, das quis uma era a nossa simpática intérprete, Ana Maria, italiana, hoje radicada na região norte da Suécia, haja frio. E um leigo e uma leiga.

Estivemos em reunião, de quinta-feira a domingo, chegando até a cerca de cem pessoas. A dinâmica coletiva foi de alegria, de reencontro e de intenso sentimento de estarmos diante da Palavra de Deus que nos levava a redescobrir caminhos na história. Maria Soave nos ajudou muito na “costura” de nossa vivência coletiva, inspirando-nos a sentir-nos um corpo só e experimentar tudo como fazendo parte de uma oração que se estendia por quatro dias. Sandro nos ajudou a redescobrir e fortalecer em nós a percepção de que o eixo da Bíblia é realmente a relação privilegiada entre Deus e os pobres; é preciso muita “ginástica mental” para inventar que o eixo das Escrituras seja outro. Sem dúvida, tem razão o Papa Francisco, quando diz na mensagem de convocação para celebrar em Novembro o “Dia dos Pobres”, que, na Igreja, a “opção pelos pobres” é “opção fundamental”, a saber, está nos fundamentos da Igreja. Sim, Jesus foi um pobre e viveu a Sua vida voltada para pobres, pessoas e grupos marginalizados e excluídos. Provou a morte dos escravos rebeldes e dos “fora da lei”. Não por acaso, foi morto entre dois “bandidos”, provavelmente dois pobres que lutavam contra o poder invasor de Roma e os poderosos colaboracionistas, tais como os Herodes e os Saduceus (cf. Fl 2, 1-11).

Tea nos trouxe a experiência feita no Brasil, durante a Campanha da Fraternidade, com o estudo dos “biomas brasileiros”, uma maneira bem prática e de prática política, de vivenciar a teologia e a espiritualidade da Criação; ter ouvidos atentos ao grito da Terra para salvar o planeta da ganância dos ricos, voltar a contemplá-lo e acolhê-lo como dom de Deus, zelar pela vida e preocupar-se com a “conservação e renovação dos recursos da terra” (cf. 5ª “Marca da Missão” na Comunhão Anglicana). “Cuidar” e “zelar” passam a ser para nós um “lugar” de obediência à Palavra de Deus. “Ecologia” (“oíkos-logía” = lógica da Casa Comum) precede “Economia” (“oíkos-nomía” = lei que impomos à Casa). Cuidar da vida é ação teologal primordial em obediência ao Deus da Vida (cf. Sb 11, 21-26). Tea introduziu como estribilho de todo o encontro o mantra: “Tudo está interligado, como se fôssemos um; tudo está interligado, nesta Casa comum”. De vez em quando, em Português com sotaque italiano, voltávamos a cantar, como se quiséssemos aprender a regra que deve dirigir nosso dia a dia, em vista do Bem-Viver: “Tudo está interligado”.

Coube a mim levantar algumas questões sobre como descobrir, em sociedades ricas, onde se “escondem” as pessoas e grupos pobres, chegar perto e escutar o gemido dos pobres; inclusive tendo em conta que, além de imigrantes refugiados (problema que se agravou nos últimos anos), temos entre nós pobres de nossa própria nacionalidade. Como fazer para descobrir onde estão, estabelecer relações de proximidade e de solidariedade, e como nossa comunidade cristã se deixar afetar por essa relação e como fazer dessa relação, não um simples gesto de ajuda fraterna, mas um “fato político”… Daí, passei a lembrar como Jesus, embora tendo sido um judeu piedoso, praticante de Sua religião, não deve ser interpretado a partir de “categorias religiosas”: não fundou uma religião e nem mesmo uma Igreja. Desta, Ele é, sim, não o fundador “jurídico”, mas o perene “fundamento”, pois temos de levar adiante Sua mesma missão de lutar para que se estabeleça o “Xalôm” entre os povos (cf. Ef 2). Na verdade, desencadeou um movimento em vista de acolher o Reino de Deus, movimento que seja capaz de fermentar mudanças fundamentais nas sociedades de opressão, como lemos com clareza nos evangelhos. Daí, a necessidade de distinguirmos claramente “religião” (linguagem e instrumento de comunicação acerca do Mistério da Vida) de “fé”, enquanto escuta e obediência à voz de Deus que nos vem mediante a própria realidade global de nossa vida.

Aqui não podemos evitar de reconhecer que o eixo de tudo na vida é o PODER, ou seja, nossa capacidade de ser e de tomar “posse” do mundo. Só o cadáver já não pode nada. Mas conhecer, desejar e atuar para possuir o mundo são condições para chegar a ser pessoas livres. O Poder nos é dado em vista da Liberdade. Mas, em aparente paradoxo, não somos livres quando nos apoderamos do mundo só para nós. Dominar as pessoas (poder opressor) e apropriar-se das coisas (posse excludente), ou seja, buscar “ser para si” é expressão de insegurança, medo de não poder e não possuir. A dominação não decorre necessariamente do Poder, o Poder por si mesmo não é uma realidade negativa. A “necessidade” de oprimir e possuir sem medida decorre, não do poder, mas do medo de não ter ou de perder o poder. A Liberdade só se dá quando alguém já está “para além de si”, o que só é possível pelo Amor. Só o amor torna livre da “necessidade” (Marx, que, por ser judeu, conhecia a Bíblia, já falava disto) e nos abre a entregar-nos mediante o Serviço e a Partilha, a pequena morte cada dia em favor de outrem (“mortificação”) e, “in extremis”, o martírio, morrer por amor ou morrer de amor… quando já não importa mais nem mesmo a própria sobrevivência, só importa o Dom (cf. Mc 8, 34-38; 9, 33-37; 10, 35-47). Atingir a Liberdade que transforma o Poder em Amor (capacidade de dar-se) que se expressa em Serviço/Partilha (e até em entrega total de si) é estar “para além de si”. Ora, ser “para além de si” é jogar-se na Transcendência, é estar em Deus. O que pode acontecer até mesmo com pessoas que se dizem ateias. Não é, necessariamente, questão de religião, mas de opção fundamental antropológica, de decidir construir a própria vida humana por esse “caminho”. Podemos, assim, perceber a profundidade das afirmações de São João na Primeira Carta: “Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus, porque Deus é Amor” (1Jo 4, 7).

É impossível amar sem ultrapassar-se, transcender-se, sem descentrar-se radicalmente, sem jogar-se, de fato, em Deus, mesmo que a pessoa nem saiba disso de maneira reflexa e nem tenha religião. Aqui está realmente o lugar de Deus em nossa vida, não fomos nós que o criamos, é graça dada já na própria estrutura de nosso ser humano. Graça, sim, porque nos faz pessoas amorosas, semelhantes a Deus. Por isso, para a Bíblia, o encontro do amor de Deus acontece no amor do próximo. Como li na parede do salão de uma igreja anglicana, na cidade do Porto, Portugal: “Há muitas maneiras de amar o próximo, mas só há uma maneira de amar a Deus, amando o próximo”. Deus, por ser Deus, é “mistério abscôndito”, pois é como fonte de rio, este não a vê, mas experimenta sua potência geradora invisível. Deus só Se revela como fonte de nossa vida, só “acontece”, em nós e entre nós, mediante a presença e a voz do próximo. Entregar-se a alguém, dar a vida, isto ninguém pode exigir de ninguém, nem ninguém o merece, e, no entanto, acontece que, mesmo assim, há pessoas que se entregam por amor e até chegam a entregar a própria vida por outrem. É que, na verdade, o Amor é infinitamente mais e maior que a relação eu-tu, “o Amor é Deus”, o Amor nos põe em contacto íntimo com o Tudo, o tudo das pessoas e o tudo do universo. Por isso “quem ama conhece a Deus”, isto é, faz efetivamente a experiência de Deus na vida. Vemos, assim, como são decisivas a antropologia, a espiritualidade e a pedagogia do Poder em vista de uma nova prática política (exercício do Poder). Na verdade, Deus se faz presente entre nós e em  nós; na linguagem da Bíblia, em Jesus, o Filho, um de nós, no qual Deus inabita, e no Espírito que nos faz assimilar interiormente o jeito do Filho, assimilando-nos a Deus…  (cf. Jo 13-17).

Terminado o encontro, permaneci ainda alguns dias em Verona e fiz três  saídas. Uma para conhecer a experiência de um grupo de imigrantes brasileiros(as), particularmente do Sul, com predominância de Santa Catarina, que moram na região. Uma vez por mês se reúnem, numa tarde de domingo, para celebrar a missa e confraternizar entre si. Planejam outros encontros comunitários, como almoços, churrascos, eventos de mútua ajuda, etc. Sem dúvida, iniciativa muito simpática. Conheci também a linda cidadezinha de Peschera e jantei em casa de um simpático casal italiano. O mesmo aconteceu na pequena e bonita cidade de Villaggio, ambas sede de antigos castelos dos tempos em que Veneza era sede de República e da época da ocupação austríaca da região.

Em seguida, estive em Udine, na região de Friuli-Venezia Giulia, que já está perto do território da antiga Yugoslávia e que se aproxima do mar. Aí tive a oportunidade de conviver na casa de Toni e Maria Grazia que já tinham sido nossos hóspedes no Recife e em Caruaru no ano passado. Foi convívio familiar: partilhamos a mesa, passeamos juntos, conheci a antiga e belíssima basílica de Aquilea e a cidadezinha marcada pela presença de pescadores. Fui levado a conhecer outros monumentos e a chegar pertinho da praia do mar que separa o território dos dois países. Udine é uma cidade bonita e tranquila. É bom lembrar que a maior cidade da Itália, a grande Milão, está em torno de dois milhões de habitantes. Não têm esse inchaço de cidades monstruosamente grandes, e os “paesi”, as cidades menores, disseminadas pelo território, são lugares aprazíveis para viver, pequenas vilas, belíssimas casas antigas, silenciosas, restos de antigos castelos feudais, povoados com estradas de primeira classe e onde você acha de tudo.

Em Udine, tive duas experiências marcantes. Uma numa paróquia, templo bem moderno, com luz natural a entrar por imensa vidraça, amplo salão que convida a “assembleia” a se por em semicírculo em torno da mesa, com cadeiras todas no mesmo nível, para quem preside e para quem participa, todos os membros do Corpo em igual condição, sem sinais de “hierarquia” (=“poder sagrado”, termo ausente do Novo Testamento, aí se fala de “diakonia”=ministério, serviço). Toda a assembleia se sente concelebrante da Ceia do Senhor. O edifício da igreja quase não se distingue das outras edificações do bairro. Fui convidado pelo pároco a participar da presidência e a dar uma palavra de apresentação, de saudação e de breve reflexão após a leitura do Evangelho. Percebi uma comunidade bastante empenhada na solidariedade com gente refugiada e com famílias italianas pobres, inclusive na assistência a pessoas com deficiência e idosas.

Numa outra paróquia tive o privilégio de pronunciar palestra sobre o tema do “Ecumenismo”. Aí se mantém um centro de encontros e reflexão, dedicado à memória de um grande padre, teólogo, conferencista e escritor, Ernesto Balducci, de saudosa memória. Homem de amplíssimo conhecimento e horizonte cultural, que incomodava a Igreja e a sociedade estabelecidas e, em cujo funeral, na Catedral de Florença, havia proporcionalmente mais agnósticos e ateus do que mesmo católicos. Era um grande profeta, comprazia-se em refletir sobre “o homem planetário” (título de um de seus livros), sobre a paz e sobre Francisco de Assis… Pois bem, no “Centro Balducci”, dirigi uma conversa sobre Ecumenismo como  caminho de nova prática política em vista de nova relação econômica (lei da Casa)  que respeite a “lógica da Casa” (Ecologia), de tal forma que todas as pessoas tenham assegurado o direito de “permanecer na Casa” (Ecumenismo), ou seja, algo muito além de simples diálogo “doutrinal” ou “religioso” entre denominações cristãs.  Sempre gosto de citar uma frase de Dom Helder Camara, dos tempos do Concílio Vaticano II, em entrevista no aeroporto de Paris, ao responder à pergunta sobre o que pensava do Ecumenismo: “Quando nós, das Igrejas cristãs, resolvermos assumir realmente as preocupações de Deus, que são as necessidades da vida de Seu povo, então, chegaremos a ter vergonha de nossas divisões, pois nos parecerão coisa tão pequenina”. É verdade, as necessidades do povo não nos perguntam primeiro por confissões de fé, mas por soluções de fé.

Finalmente, chegou a hora de viajar a Roma, onde tinha vivido por bem oito anos, entre os anos sessenta e setenta, durante o curso de Teologia, de complementação dos estudos filosóficos e de Sociologia e também os quatro anos de aprendizagem da Exegese Bíblica. Os dois primeiros anos coincidiram com o Concílio Vaticano II, uma especial graça de Deus. Rever Roma é sempre uma alegria e particular emoção, uma cidade linda, carregada de história e tesouros de arte. Sendo a capital do mundo católico romano, logo suscita em nós a meditação sobre a trilha e o destino da Igreja cristã. Sem dúvida, o momento de hoje está carregado de escuras nuvens de preocupações. As Igrejas cristãs se acham em perigosa encruzilhada. O Cristianismo se desmembra cada vez mais em inumeráveis ramos e movimentos até contraditórios entre si. As instituições carregam em boa medida, e não só no Catolicismo romano, a herança de estruturas medievais, tanto no nível da visão e do pensamento, quanto no das relações e da organização estrutural. Baste pensar no autoritarismo que marca o mundo cristão, respaldado pela aura sagrada de intocabilidade da “instituição divina”, em larga medida só “ideologia” pura e simples. Além disso, a linguagem na qual se tenta transmitir a fé, em vez de facilitar, parece que dificulta fortemente a comunicação com a sociedade, sobretudo com as novas gerações. E quanta dificuldade de se convencer de que os pobres são o alvo central da proclamação do Reino, seu objetivo privilegiado e seu primeiro agente! Cresce a onda conservadora e até fundamentalista. O povo cristão ainda tem grande dificuldade de ver que a mensagem bíblica e a fé não se identificam com uma determinada religião; são, antes de tudo, uma nova proposta de vida, mudança radical de consciência e de prática (cf. Rm 12, 1-2). Trata-se de assumir a tarefa divina de transformar este mundo, reinventá-lo segundo os sonhos de Deus (cf. Gn 1-2; Cântico dos Cânticos e Apocalipse). O centro da mensagem bíblica tem em vista uma radical mudança na maneira como vivemos a questão central da vida que é o poder. Somos chamados(as) a recriar continuamente uma espiritualidade do poder, fundada numa antropologia do poder, e que se concretize numa pedagogia do poder, que nos conduza a nova maneira de exercer poder, ou seja, a nova prática política. Aqui estamos muito além da “religião” e das instituições religiosas, as quais frequentemente funcionam como ideologia legitimadora dos poderes de  opressão, religiosos e seculares.

Cheguei a Roma com esses pensamentos e sentimentos na cabeça e no coração. Fui recebido como irmão por quem gratuitamente me hospedou. Aliás, a “rede das casas” é uma das coisas que mais me impressionam e encantam na vida da Igreja, abrimos a nossa e outras cem se abrem para nos receber (cf. Mc 10, 17-31). Revi antigos conhecidos e conheci novos irmãos e irmãs. Fiquei hospedado na casa de Gianni Novelli, um jornalista que há tempos atrás também exercia o trabalho de padre, num lugar especial, o Gianicolo. Esteve em nossa casa em Olinda em 1981, nossas filhas ainda bem pequenas e Gianni ainda se lembrava da jarra de suco de laranja da qual bebera com prazer, memória privilegiada de jornalista. Recebeu-me e tratou-me melhor do que se trata um irmão. Senti-me em casa, passeamos juntos e conversamos muito, fez-me conhecer novos amigos e amigas. Tudo fazia para que me sentisse bem.

No meio da crise atual das instituições e da linguagem da fé, descobri que há pessoas e grupos envolvidos com novas experiências de solidariedade e autonomia. Encontrei, por exemplo, um grupo de mulheres que, com tranquilidade “teológica”, celebram entre elas a Ceia do Senhor, sem “autorização” e sem padre, e perseveram em sua fé católica. Passeei, revi paisagens conhecidas, revivi a beleza da “Cidade Eterna”, em seus jardins e monumentos. Nunca Roma tinha me chamado tanto a atenção pelo gabarito baixo de seus edifícios de apartamentos (máximo de seis a oito ou dez andares) e por sua intensa arborização.

Estive muito próximo de uma “comunidade de base” muito ligada a um dos maiores profetas da Igreja italiana, Giovanni Franzoni, há pouco falecido. Sofreu incríveis perseguições: de abade beneditino reduzido a “simples” padre, de padre “reduzido” (?) a leigo, de leigo a pessoa “sob permanente suspeita”, mas sempre fiel. Como abade no mosteiro da Basílica de São Paulo, em Roma, participou como membro do Concílio Vaticano II e, naqueles dias, em que fazia prolongado jejum e orações em protesto contra a guerra de agressão americana no Vietnam, publicou uma famosa e profética carta pastoral, cujo título era “A Terra é de Deus”, ainda hoje lembrada. Participei da celebração de sua memória com dois meses de seu falecimento. Uma comunidade organizada em grupos menores de vivência, com trabalhos sociais e compromisso político, que também se reúne autonomamente para meditar a Bíblia e compartilhar a celebração da Ceia do Senhor a cada domingo. Fui recebido, para almoço ou jantar, em casas de membros da comunidade. Tive a oportunidade de fazer uma saudação à assembleia e comentar o alcance ecumênico do que ali acontece.

Ainda visitei minha amiga Clotilde, viúva recente do meu grande amigo e mestre de espiritualidade Ettore Masina, há poucos meses falecido. Um mestre de espiritualidade radicalmente política (chegou a ser deputado no Parlamento italiano), por isso, naturalmente profética, que dedicou muito de sua vida a serviço dos pobres da Palestina e de nossa Afroameríndia, particularmente do Brasil; muito conseguiu fazer por prisioneiros políticos e por suas famílias nos pesados tempos da ditadura civil-militar dos anos sessenta e setenta. Pena não ter podido mais  encontrá-lo ainda em vida, era um dos motivos da viagem, revê-lo antes de morrer… ele se fora antes, não teve tempo de esperar já com seus mais de oitenta anos.

Numa de nossas saídas, Gianni me acompanhou à Catacumba de Santa Domitila. Ali recordamos o famoso “Pacto das Catacumbas” no qual, ao encerrar-se o Concílio Vaticano II, um significativo grupo de bispos se comprometera a promover uma Igreja pobre que se encarnasse de maneira pessoal e concreta no jeito de ser de seus pastores, que os bispos fossem verdadeiros pastores pobres de uma Igreja pobre. Com esse gesto desejavam suprir uma lacuna, o Concílio não chegara a cumprir o sonho de João XXIII, e tão intensamente sublinhado pelo Cardeal Lercaro, de explicitar com clareza e força a relação direta e clara entre a Igreja e o mundo dos pobres. Ali, bem perto da Catacumba estão as chamadas “Grutas Ardeatinas” (“Fosse Ardeatine”). Grande grupo de lutadores anti-fascistas foram ali encurralados e aprisionados; e as grutas dinamitadas e os corpos ou explodidos ou soterrados com a caída das grutas… Um santuário a testemunhar a crueldade de que nós, seres humanos (?), somos capazes, uns contra os outros. Hoje é um monumento sepulcral para testemunhar até onde pode chegar nosso perverso instinto destrutivo, lugar de silêncio, de penitência e de vergonha.

Finalmente, o encontro com o Papa Francisco. Toda quarta-feira, às nove da manhã, o Papa desce à Praça de São Pedro para acolher e falar aos peregrinos que Lhe chegam de vários países do mundo. Metade da praça estava ocupada. Funcionários do Vaticano anunciam os grupos presentes. E o Papa fala à multidão. Desta vez, falou de sua viagem à Colômbia, que visitara na semana anterior, em missão de reconciliação. Os bispos, mesmo de Igrejas não romanas, são admitidos a sentar-se em cadeiras bem perto do Papa e no final podem aproximar-se e dirigir-Lhe brevemente a palavra. Ao caminhar em direção ao posto que me estava designado, nunca tinha recebido tanta “continência” em minha vida… A figura do Papa é aquela mesma que sentimos pela televisão, afável, sorridente e, ao mesmo tempo, reflexivo e “pensativo”. O que Lhe disse? Aproximei-me, demo-nos as mãos afavelmente e eu me apresentei como bispo da Igreja Anglicana no Brasil e lhe segredei: “Quero dizer-Lhe uma coisa e pedir-Lhe outra: No Brasil oramos pelo Senhor e pensamos que sua eleição a papa na Igreja de hoje foi um milagre de Deus (ele sorriu e se disse agradecido); e comentamos que este milagre foi Dom Helder que pediu a Deus que acontecesse (neste momento ele sorriu largamente). E pedir-Lhe: Chame a Igreja a viver um processo conciliar, pois isso seria muito importante para toda a Igreja cristã do mundo inteiro (neste momento apertou meus antebraços com um rosto muito sério e concentrado), e nos despedimos…

Por que um novo Concílio? Porque a situação do Cristianismo no mundo parece caracterizar-se como em momento muito crítico. A Cristandade se esfacela em pedaços, alguns irreconhecíveis; abrem-se igrejas como se abrem bodegas, e é massiva a dominação autoritária das consciências, a manipulação ideológica e a exploração financeira das pessoas, em moldura de “religião de mercado”, superficial e até anti-bíblica,  justificada pela “teologia da prosperidade”, até no Catolicismo, infelizmente. A Igreja Cristã parece não ter nem estruturas nem linguagem apropriadas para dialogar com a sociedade e responder a suas perguntas. As Igrejas tornam-se cada vez mais conservadoras e refugiadas num sistema “religioso” fechado. O clericalismo se acentua, com desprezo pelo povo leigo. Os interesses parecem sempre mais voltados para dentro da instituição. A Liturgia se faz superficial, rodeada de exterioridades e sinais de riqueza e ornamentos afetados e supérfluos. Marcado por sua já longa história, o movimento cristão se converteu em religião, monarquia teocrática como sistema de poder, ideologia do Império, do sistema feudal e, a contra gosto, até do Capitalismo. E agora para onde vai? Papa Francisco com seu testemunho pessoal, com seus gestos e palavras, começa a indicar nova direção, mas sofre cerrada oposição e até espionagem, a começar do próprio Vaticano e, infelizmente, o episcopado mundial não parece oferecer-lhe suficiente e aberto apoio. Até o momento não tem realizado nenhuma reforma estrutural, o sistema permanece quase intocado. Frente a tão grandes dificuldades, não basta nem a santidade e nem a boa vontade de um Papa “a pregar no deserto” da Igreja. Só um Concílio Geral teria condições de retomar efetivamente os rumos abertos pelo Vaticano II, pois toda a Cristandade seria mobilizada, e com os correntes meios de comunicação teríamos, de maneira inédita, uma participação de toda a Igreja, desde o povo leigo até o próprio Papa. Estaríamos, quem sabe, em situação privilegiada, para prosseguir na estrada aberta há mais de cinquenta anos atrás pelo Papa João XXIII, aberta, sim, mas até hoje não completada, por força das resistências oferecidas pelo sistema de poder eclesiástico. Além disso, já poderíamos imaginar como agora seria diferente a contribuição das Igrejas do Oriente e das Igrejas nascidas da Reforma Protestante. Além disso, o conjunto do povo cristão já estaria bem mais amadurecido que nos anos sessenta para refletir sobre seus indissolúveis laços com a sociedade, sobretudo com as nações e as pessoas pobres do mundo. O jornalista Luigi Sandri, da Comunidade de Base de São Paulo, escreveu recentemente um belo livro de história dos concílios: “Do Jerusalém I ao Vaticano III”, sem dúvida, para estimular a Igreja a pensar e a debater a possibilidade de um novo concílio geral, em continuidade com o processo iniciado no Vaticano II. Deus permita que o Papa Francisco, tão parecido com o Papa João, até na idade, tenha dele a mesma santa inspiração e a mesma profética coragem! E experimentemos de novo na Igreja aquilo que disse o grande teólogo alemão Carlos Rahner, ao comentar o pontificado de João XXIII: “E o Papa da transição foi, na verdade, a transição do papado”. Obra que, infelizmente, até agora ainda não se completou… É que não depende só do Papa, depende da Igreja, como Povo de Deus, se realmente for capaz de escutar a voz do Espírito e tiver realmente coragem de anunciar “o que o Espírito diz às Igrejas” (cf. Ap 2, 29; 3, 6.13.22). Deus nos ilumine e fortaleça!

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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