Para ir da República Cebolinha, na rua de Maruim, até o Hospital de Cirurgia, onde se localizava a Faculdade de Medicina, a rua de Estância era parte do percurso. Durante seis anos, fazia sempre o mesmo caminho, pouco após o amanhecer, com passos bem cadenciados, para assistir à aula das sete horas. O corpo docente elitista estimulava os alunos a incorporar os costumes dos mestres.
Durante o deslocamento, era perceptível que a cada instante as ruas tornavam-se mais povoadas e depois de algumas semanas foi fácil concluir que as pessoas que eu via eram quase sempre as mesmas. Os mais idosos aparentavam ser comerciantes e homens de negócios que se dirigiam para mais um dia de trabalho. Os jovens pareciam estudantes em direção à escola. No decorrer de alguns semestres, minha memória sentia saudade da presença de um ou outro transeunte costumeiro, em geral, idoso. Era a ação do tempo produzindo o inevitável desfolhamento.
Nesse vai e vem, era comum dar de cara com u´a moça saindo de carro, da garagem ao lado de sua casa. Por vezes interrompia meus passos para não interferir no movimento do veículo, quando ainda na calçada. Pela fresta da janela aberta do seu carro, contemplava seu rosto bonito, às vezes adornado pelo vento que esvoaçava seus cabelos pretos e lisos. Trocávamos olhares fugazes e nenhuma palavra. Eventualmente, ficava sufocado quando eu fitava a parte de seus seios, que afloravam pelo decote de sua blusa. Essa situação se repetia de forma esporádica na mesma semana, já havia vários meses, em que somente metade do seu corpo era disponível aos meus olhos. O clima deixava-me ansioso para conhecer suas formas e aflito de tanto camuflar predatórias intenções.
Nos poucos momentos livres que tive, numa noite de feriado, resolvi dar rédeas soltas ao destino e fui perambular na Feira dos Municípios, o mais importante evento beneficente promovido pelo governo do Estado. Na Praça da Catedral, eram montados estandes de madeira distribuídos em ordem alfabética com o nome de cada município. Nas prateleiras eram expostos produtos, serviços e tradições de cada região.
Sem poder frequentar lugares que exigissem grandes despesas, sentei-me num barzinho com dinheiro suficiente para duas cervejas. O local permitia observarmos a animação, agitação e o movimento incessante da multidão. Inesperadamente, fui surpreendido pela presença da jovem que interrompia meus passos a caminho da faculdade. Pela primeira vez, tive um retrato de corpo inteiro. Acompanhada de uma amiga, procuravam lugar para sentar e apoderaram-se, com minha permissão, das cadeiras desocupadas. Trocamos algumas palavras e sentia-me nas nuvens quando seus olhos emitiam fluxos que invadiam e excitavam minha alma. Parecia uma moça no pico do desenvolvimento biológico da idade adulta jovem. Uma maquiagem suave imprimia charme especial a seu rosto e sensualidade irresistível a seus lábios. Suas ancas carnudas e sua bunda convexa possuíam curvas sinuosas, que se perdiam de forma harmoniosa no corpo e o pedaço descoberto de suas coxas despertavam impulsos de animalidade. O sonho era levá-la para longe de tudo e de todos, para viver uma fantasia incontida que crescia com seus gestos. Sentia-me insultado por desejos libidinosos que afogavam o bom senso. Com o braço em sua cintura puxei seu corpo na minha direção e gradativamente desci a outra mão para acariciar seus seios. Esperava solidariedade aos meus impulsos, mas não recebi nenhuma manifestação de afeto. Um sorriso indeciso passou por seus lábios. Esquivou-se, evitou ser coberta de beijos, desgarrou com suavidade minhas mãos de seu corpo e saiu apressadamente, sem despedidas, e perdeu-se na multidão.
Não consegui dissociar um amor incipiente de desejos intensos. Desprezei valores acima dos prazeres e cometi uma brutalidade. Esforcei-me para apagar as marcas grosseiras resultantes de estímulos indomáveis, entretanto, foi tudo em vão. Aquele momento amargo passou a pulsar de forma continua no meu coração. Envergonhado, resolvi esconder-me e excluir a Rua de Estância do meu caminho. Nossos olhos só voltaram a se cruzar depois de alguns anos, na minha formatura, ocasionalmente, sem despertar ódio ou paixão. Aracaju, 11 de setembro de 2015