Pedro Nero chegou à República Cebolinha proveniente de uma pequena cidade do interior onde tornou-se notável após sua aprovação no vestibular. A sua genética não havia sido
generosa em termos estéticos. Era feio de ferir a vista, no entanto, interessante. Tudo em seu corpo era desproporcional e mesmo olhos bem treinados arregalavam as pálpebras assustados ao se deparar com ele. Baixo, pesado, sem elegância, de testa um tanto protuberante, sobrancelhas grossas, distância excessiva entre os olhos, olheiras roxas, nariz grosso com narinas redondas apertadas e queixo levemente recuado. Nenhum ângulo, nenhuma manobra, nada melhorava sua aparência. Parecia, em tudo, o mais velho dos residentes, com gosto exagerado por bolero, festa de natal, missa dominical e amostra grátis de remédios.
Estudante de Direito, vivia a cavar de forma desesperada emprego ou estágios remunerados. Várias vezes durante a tarde vestia a melhor roupa – entre duas a três guardadas, bem dobradas, dentro da mala – e saía a visitar repartições públicas e escritórios de advocacia particulares em busca de seu sonho. Agendava inúmeras entrevistas e em certas ocasiões, com boa antecedência, ensaiava diante do espelho respostas às perguntas que ele mesmo formulava. Queria demostrar empatia, boa aparência, elegância, interesse, habilidade e fala fluente com entonação forte. Precisava deixar no entrevistador uma marca inegável de conhecimento, motivação e exuberante energia.
Ao final da tarde, depois de humilhantes sabatinas, retornava mentalmente desgastado com ar apático e expressão frustrada, e assim permanecia por alguns dias. Trocava ideias com seus colegas da área, planejava, lia, estudava e as dificuldades aumentavam. Em algumas ocasiões, chegou a contar com o apoio de diversos professores que concordaram em conceder-lhe uma carta de recomendação. Com entusiasmo recuperado, lá ia Nero outras vezes, quase todos os dias, durante meses, em busca de trabalho.
Depois de inúmeras decepções chegou o momento do último suspiro: uma entrevista com um militar de alta patente, com fama de sisudo, preciso, de pouca conversa, fiel, rigoroso e muito influente no Estado. O encontro ocorreu no momento combinado, Nero voltou otimista e no dia seguinte foi à DESO assumir o cargo de leiturista. A carta de recomendação do militar foi bem compreendida por todos e superou a inteligência, a escolaridade, o perfil do portador, exame pré-admissional e as necessidades da repartição pública. Estava feliz consigo mesmo, e transpirava alívio, alegria e satisfação. Não encontrou dificuldades para conciliar o excesso de aulas com o trabalho e exerceria as funções de leiturista sem prejuízo na vida escolar.
Certo dia chegou atrasado e almoçou sozinho. Comentou com a empregada que estava cansado e com as pernas machucadas de tanto caminhar. Durante a manhã tinha efetuado quase todas as leituras do dia. As que faltavam seriam realizadas antes das quinze horas, porque precisava estudar muito Direito Penal.
Inesperadamente, despertei de sobressalto, nos primeiros segundos de uma madorna de quinze minutos, com Nero perguntando sobre o remédio novo, bem exposto na estante. Naquele momento uma ideia surgiu que tomou forma instantaneamente. Levantei, abri a embalagem e fingi ler a bula: trata-se de medicação nova para tratamento de cansaço, fadiga, cãibras e dor nas pernas. Nero retirou uma cápsula da cartela, ingeriu e foi embora. Na verdade, a medicação era indicada para insônia grave.
Retornou aproximadamente uma hora depois. Caminhava desequilibrado e demonstrava muito esforço para manter-se em pé, Com a fala incompreensível, chegou a engasgar-se com a própria saliva. Reclamou de sono, moleza e confusão mental. Foi tomar banho frio e depois café forte para tentar contrabalançar. Sentou na carteira e abriu o livro de Direito Penal. Em poucos minutos seus braços não sustentavam o livro e o pescoço deixou cair a cabeça sobre os ombros. Foi à cama e quase que imediatamente roncava em sono profundo.
Ao amanhecer, foi despertado por estímulos persistentes para ir fazer o teste. Sonolento e com dificuldade para abrir os olhos, estranhou o próprio quarto e a presença de alguns colegas. Assim mesmo, foi à faculdade. Respondeu às questões de forma desorganizada, incompleta e trocou os conceitos de crime doloso e culposo. O mau desempenho resultou em sua reprovação. Ficou com um verdadeiro espinho atravessado na garganta até o final do semestre seguinte, quando obteve aprovação.
Aracaju, 11 de agosto de 2015
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.