15 de outubro de 2017
- É animadora a retomada, nas últimas décadas e em todo o mundo, da histórica luta pela libertação das mulheres de todas as formas de exploração e dominação e pela igualdade básica entre os seres humanos. É inaceitável que a humanidade conviva com e tire proveito da cruel discriminação e do preconceito contra a mulher manifestos na violência física, moral, sexual e psicológica.
- O feminismo propõe políticas sociais e atitudes pessoais contra os efeitos dessas práticas e aprofunda as causas de sua naturalização. Mas, sabe que a compreensão intelectual do problema está ligada à possibilidade concreta de mudanças – impaciência e radicalismo verbal são ineficazes, mais dividem que mobilizam; legitimam o populismo moralista, patriarcal e fundamentalista a tirar proveito do “atraso”.
- Em certas falas sobre o feminismo perpassa um viés ideológico: o encantamento com o debate cultural – mudança de comportamento – sem relacionar com a mudança estrutural. Tal postura tem levado à divisão, gerado impotência de mobilização e, no campo popular, até desvios: elogio de burguesas e serviçais só pela cor da pele; defesa das mulheres pelo fato de serem mulheres, ainda que reacionárias…
- Outras vezes, certas abordagens do feminismo, insinuam busca de espaços de terapia ou forma de suprir uma carência de reconhecimento. Pior ainda, quando, na prática,alimentam a guerra homens x mulheres vendo na relação afetiva uma forma de exploração. Além disso, pela multiplicidade e diferenciações de visões a respeito do tema, tem sido difícil uma formulação consensuada.
- Se a história não é receita, pode ser inspiração para o que fazer e até para o que não fazer. Outras gerações tiveram desafios semelhantes e encontraram formas de superá-los. É necessário conhecer e tirar lições da prática social acumulada e avançar em novas conquistas. Mas, cada povo e cada geração fará, sem cópia, a trajetória que ajuste ao seu ritmo, seu colorido e seus interesses.
a. Há 100 anos, os bolcheviques aplicaram um programa radical para libertação da mulher e para a transformação da família tradicional. Na sua teoria, o essencial para a libertação das mulheres era tirá-las do trabalho do lar (o trabalho do lar é o mais improdutivo, o mais selvagem e o mais árduo trabalho que a mulher pode fazer) e trazê-las para a esfera da produção; assim, obteriam independência econômica e desenvolveriam uma consciência de classe.
b. Para isso, o Estado popular teria que assumir o cuidado das crianças e o trabalho do lar. Por isso, já em outubro de 1918, ratificam o Código do Casamento, da Família e Tutela que igualava o status jurídico das mulheres ao status dos homens; ambos os cônjuges tinham direito às suas próprias propriedades e renda; os filhos fora do casamento teriam os mesmos direitos como os filhos do casamento; se abria a possibilidade do divórcio, a pedido.
c. A inexperiência, a guerra civil e o cerco capitalista, no entanto, obrigaram a maioria das mulheres a batalhar pela sobrevivência e desinteressar-se do esforço revolucionário. Resultado: em vez de “nova mulher”, foi reforçado a imagem da dona de casa “bitolada”, “atrasada” e dominada pelo marido e pelo padre. Para combater esse “atraso” se criou o Bureau das Mulheres que propunha mobilizar essas mulheres a partir e em torno de seus interesses.
d. Foram elaborados projetos diretamente ligados às mulheres, naquela conjuntura. Organizou-se a alfabetização, a construção de creches, os refeitórios e cooperativas de consumidores. Em 1920, mesmo com pouco financiamento, foi iniciada uma campanha contra a discriminação salarial e na contratação, o assédio sexual, a demissão de mulheres, o alcoolismo, a agressão às esposas … O feminismo afirmativo encorajou as mulheres, mas preocupou certas lideranças.
e. Em sua ânsia represadas, certos grupos, no seu entusiasmo, afirmavam ser “necessário lutar pela libertação das mulheres e lutar contra os homens”. Na Ásia Central, foi lançada uma campanha contra o véu, contra o preço da noiva, a poligamia, a segregação das mulheres…. O resultado foi trágico – cerca de 800 mulheres foram assassinadas por homens que acusavam os bolcheviques de “transformam as mulheres em prostitutas”. Esses fatos serviram de pretexto.
f. O Bureau foi acusado de fazer “trabalho porco” e dissolvido. Os bolcheviques que desafiaram o conceito patriarcal do direito divino de dominar as mulheres, na pratica, seguiram a norma masculina. A revolução priorizou a produção descolado da esfera da reprodução onde se situavam a maioria das mulheres, pelo fato da maternidade. Os conceitos patriarcais, antes reprimidos, voltam a reinar – a incoerência do discurso mostra que o velho homem continua vivo. - É indispensável conhecer as diferentes visões, suas implicações na vida dos grupos, a importância da temática mulher e o espaço específico de sua organização e formação. Dominar o tema é conhecer suas demandas específicas concretas e pautá-las como luta do conjunto. Exemplo: políticas e normas contra o assédio e a violência moral e sexual e aplicação de código de ética para quem violar tais conquistas.
- A libertação será sempre obra de quem está oprimido. Vontade e radicalismo verbal não arrastam quem está oprimido. A longa transição de desconstruir uma cultura arraigada e construir a nova ordem social, com novos homens e novas mulheres requer o envolvimento da mulher como ator político. Só quando ela sente na vida que pode, a mulher entende que vale; então, a canga sacode e já não há quem lhe cale.
*Roteiro para discutir a prática do feminismo – agosto/2017
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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