Minhas primeiras apresentações na Praça da República só puderam ser filmadas graças à minha querida esposa, a qual, numa prova de companheirismo e abnegação, sacrificou preciosas horas de seu repouso dominical em favor de algo mais importante para mim do que para ela.
No entanto, sucessivas situações constrangedoras acabaram por precipitar o seu pedido de demissão (do cargo de cinegrafista, apenas).

Primeiro foi um jovem senhor, que se apresentou como empresário, dizendo-se muito articulado na cena musical local. Conversou com ela durante quase meia hora, lhe contou suas viagens e as vantagens que ele tinha. Ao perceber que se tratava de minha mulher, prometeu que iria me tirar daquele lugar, daquela condição degradante de músico-de-rua-pedinte-de-esmolas. Deu seus números de telefone, e pediu que ela telefonasse durante a semana, pois viajaria em breve e passaria muito tempo fora tratando de negócios. Uns dois dias depois, eu liguei, me apresentando como “o guitarrista da praça”. Ele não se lembrou…
“Você deu seus números à minha esposa, que estava filmando…”
“ÔÔÔ, meu amigo! Sim… claro que me lembro! Sua esposa… Você merece coisa muito melhor do que tocar na praça. Tenho muitos contatos para você. Seu estilo é maravilhoso! Vamos fazer um trabalho bacana de divulgação! Blá, blá, blá…”
“Mas você vive de quê mesmo?”
“Trabalho com publicidade de eventos e de escritórios de advocacia.”
“???”
“Já trabalhei em diversos eventos e agora estou estudando Direito.”
“???”
“Venha aqui em casa para conversarmos. Você mora onde?”
“Entroncamento.”
“Poxa… do outro lado da cidade… fica difícil para você vir, não é?”
“Posso ir aí à noite, é só marcar o dia.”
“Então me liga umas 15 horas, porque estou saindo para almoçar agora.”
Liguei às 15 horas, e insisti mais algumas vezes. Nunca mais me atendeu… nem retornou…

Depois, foi o senhor que fala neste vídeo que compartilho. Servidor público estadual há 37 anos… toca pandeiro no Dedão, acompanhando seu amigo do violão, que também toca em bares na Vinte e Cinco e na Primeiro de Dezembro… Esse foi até mais discreto, porém é evidente a mudança de rumo da conversa, ao saber que a cinegrafista é casada com o guitarrista (ou sou eu que quero perceber dessa forma? Posso estar sendo injusto com ele…).
“Você conhece ele?”
“Conheço.”
“Bem?”
“É… conheço.”
“É esposa dele…”
“Sou.”
“Olha só…”

Piores ainda foram as abordagens diretas, descaradas e insistentes, relatadas a mim sem maiores detalhes. Para muitos homens, mulher sozinha na praça da República está a fim de onda. Ponto final. Respostas negativas não são aceitas. Perseguições são válidas.

Isso sem falar na horda de “malacos” onipresentes. Por causa deles, até eu tive de intensificar o esquema de segurança do meu chapéu, pois senti que logo seria roubado.

Diante dessa exposição de motivos, acatei seu pedido de demissão.
Desde então, os vídeos estão sendo gravados em casa, e serão publicados aos poucos.

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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